domingo, 3 de julho de 2016

Notas de um escritor vagabundo

Conheci José no primeiro semestre do curso de Jornalismo. “Cê me arruma um cigarro”, foi a primeira frase que ele me disse. Dei-lhe meu último Marlboro Light. “Valeu”, agradeceu. Em seguida, trocamos algumas palavras. E descobrimos que tínhamos afinidade. Gostávamos do mesmo som: The Doors, Pink Floyd, Janis Joplin, Jefferson Airplane, Tim Maia, Novos Baianos e Nação Zumbi. Dentro de pouco tempo, já éramos grandes amigos. Curtíamos Medos e delírios em Las Vegas, e éramos fãs de Hunter Thompson. As pessoas sempre perguntavam há quanto tempo nos conhecíamos. “Eu achava que era há, no mínimo, uns quatro, cinco anos”, afirmou Denise, ex-namorada de Raphael.

O primeiro semestre da faculdade foi tranquilo. Novas experiências, novas pessoas que entraram e saíram de minha vida, novas ideias, novos pensamentos, novas leituras. Era um mundo que despontava a mim. E eu queria pegá-lo. Eu queria absorver e semear conhecimento. Nesse semestre, tive uma professora simplesmente sensacional, de Linguagem e Comunicação. Graças a ela, mergulhei de cabeça na leitura dos grandes clássicos da literatura. E pratiquei alucinadamente a escrita. Falavam-me que escrevia bem, que eu tinha de seguir carreira literária, que meu texto era potente, que as coisas que habitualmente colocava no papel eram do caralho. Estas afirmações foram como um murro bem ao meio da face. Um escritor não pode dar-se ao luxo de se achar muito bom. Na verdade, ele já se acha muito bom. Um escritor que não é publicado, acha-se um gênio porque ninguém o publica. O que é publicado também se acha um gênio, mas por outros motivos: seu livro saíra da gaveta.

Os escritores flutuam sobre a mesma merda.

Eu não era nenhum dos dois. Porém, sobrevoava, com afinco, a merda. Encontrava-me num processo de amadurecimento literário. Eu queria fazer algo diferente, algo maior que a vida, talvez. Eu queria unir música e literatura, porque as frases tem ritmo, tem molejo, tem melodia e harmonia. Então, eu dedicava algumas horas de meu tempo, essencialmente ocioso, à leitura de clássicos. Devorei Proust, Nietzsche, Hemingway, Fitzgerald, Thomas Mann, Henry Miller, Jack Keroauc, Guimarães Rosa, Satre, Hunter Thompson – que li e reli para tentar achar o ritmo alucinado de sua prosa.

Antes, eu aspirara ser músico. Toquei guitarra por alguns anos. Cheguei a fazer algumas apresentações em público. Todavia, descobri que há gente mais talentosa que eu pra música. E o mundo não precisa de mais um idiota segurando uma guitarra. Meu pai ficou puto. É até compreensível. Ele havia me dado uma stratocaster, da Gianinni. Deve ter pagado uns 500 paus, mais ou menos. Tenho o instrumento até hoje, mas nem o toco.

Meu negócio é a escrita. Quando o mundo está desabando sobre a minha cabeça, eu sento e escrevo. Às vezes, bebo um trago pra coisa fluir mais fácil. Outro dia me perguntaram como se dá meu processo de escrita. Eu disse que só preciso sentar-me em frente ao computador, acender um baseado, colocar um Miles Davis ou Howlin Wolf, beber um trago e o resto o teclado faz. Notei - após minha descrição - que a pessoa se espantara com minha espontaneidade. Fazer o quê? Quem força a escrita não deve jamais escrever. O texto fica maçante, chato e pedante. Ninguém merece.

Porra, falei demais. Pra variar, claro. Dizem que sou introvertido. Até sou, acredita? Mas na companhia das pessoas que não tenho muita afinidade. Com as mulheres converso mais. Sinto-me mais seguro na companhia delas.

Em minha família, poucas pessoas concluíram um curso superior. Alguns diziam que era perda de tempo estudar. Ainda bem que descobri - muito novo - a poesia e ela estimulou-me a sonhar, a ultrapassar a janela e abraçar o mundo. “O negócio é trabalhar pra ganhar grana”, alardeavam meus parentes. Penso o contrário. A academia é importante, mas pro que quero fazer, nem tanto. O ofício de escritor exige apenas o ócio criativo. Contudo, para o jornalismo a academia é fundamental. Os professores ensinam noções de ética e técnica, que irão guiar-lhe o resto de sua vida profissional. Ninguém te ensina a escrever, tampouco a viver. E a literatura transita entre estes dois mundos: o empírico e o intelectual. O jornalismo, por sua vez, distancia-se um pouco: ele é empírico e real – mas algumas reportagens misturam técnicas literárias.

Meu desanimo fez com que eu trancasse a faculdade no início do terceiro período. Havia, também, alguns livros malucos, o que bem pode ter acentuado minha vontade. Eu andava lendo Dostoievski e Satre – em abundância. Antes de abandonar Jornalismo, eu havia escrito um ensaio filosófico, intitulado de Dinheiro é uma merda. Pra você ter uma ideia de como andava minha mente, cara. Pensando bem, acho que foi uma boa coisa eu ter me ausentado da PUC. Eu estava cansado. Não aguentava a conversa daquelas pessoas. Todos queriam ser melhores do que os outros. Todos me pareciam tristes e sem vida, dentro de seus carros, que foram dados por seus pais – detentores de algum cargo de importância, cujo salário devia ser uns 20 mil, no Ministério Público. Aí, desfilavam sua esquizofrenia tecnológica, fomentada pelos aparelhos de última geração que empunham à mão. Mediam conhecimento. Reverberavam explicações tecnicistas sobre a vida, sobre o mundo. E eu apenas seguia em frente, como Dean Moriarty – célebre personagem de On the Road.

Quando soube da novidade, Zé indagou:

“Cê vai trancar mesmo, brother?”

“Vou, bicho”, respondi. “Não tenho saco pra ir mais um semestre naquela merda.”

“E eu vou ficar rodado lá.”

“Preciso arrumar um trampo”, expliquei. “A coisa tá feia pra meu lado. Meu pai disse que vai me 
expulsar de casa se encontrar mais um baseado em minhas coisas.”

“Cê tá fodido, hein, cara.”

“Nem me fale.”

“Tá rolando aquelas desculpinhas, tipo: não vou fumar maconha nunca mais na vida?”, perguntou Raphael, gargalhando.

“Tá, acredita?”

“Sim. Sei como é. Conheço teu pai, cara.”

Em um mês, eu já havia arrumado um trampo. Era atendente num call-center. Prestava serviços ao banco BMG. Trabalhava na Atento, das 14h50 às 21h10. A priori, consegui provar pro meu pai que eu podia desempenhar uma função qualquer, numa empresa qualquer. Mas lá percebi que os homens perdem muito tempo de suas vidas com atividades inúteis, dando dinheiro pra gente desprezível, mesquinha e adeptas do juízo de que quanto menos se pensar – e se questionar – melhor. A gente tem de acordar cedo, lavar o rosto, defecar, mijar, banhar-se, escovar os dentes, fumar, ir pra faculdade, almoçar, embriagar-se, ir trampar e, no final do dia, chegar em casa, cansado. Não há tempo pra nada. E, ainda, temos de apertar as mãos do chefe e saudá-lo, com algum comentário medíocre: “muito obrigado pela oportunidade”.

Mas eu estava lá por outras razões. Eu queria acumular experiências. Eu queria viajar. Eu queria ter minha grana. Eu queria experimentar o que todos já experimentaram, e o que eu, um simples estudante de Jornalismo, demorei a conhecer: o labor.

Passei o período de experiência. Fui efetivado. Seguia minha rotina normalmente. As sextas-feiras, parava no porcão, na 84, enchia a cara até o bar fechar e ia embora, trôpego. Sempre eu e Zé. Embriagados, traçávamos planos de como articular um plano de viajem digno com nossas condições financeiras. Não somos ricos, nem pobres. Mas não temos grana pra esbanjar por aí. Em 2 de novembro, partimos rumo a Salto Corumbá. Pra dois quebrados, nada mal. Fomos armados até os dentes. 50 gramas de beque, 25 pra cada, repartido na bagagem. Uma garrafa de uísque de péssima procedência e algumas caixas de Bávaria, cuja quantidade nem me lembro. E três ácidos, que tomamos contemplando as cachoeiras. Ficamos três ou quatro dias - não me recordo com exatidão. Sei, somente, que faltei no trampo. E contei alguma história pra minha chefe, que, com toda razão, não gostara nada, nada, nada. Mas voltei, porra. Ela queria o quê? Fiz meu trabalho, certinho. Um mês depois, vieram as férias. Zé já não frequentava a faculdade. “Não consigo, cara”, contava ele. “Acho que me cansei de lá. E outra: não faço merda nenhuma”, concluía, esbanjando sua invejável sabedoria.

Zé é o melhor cara que você pode ter ao seu lado numa viajem. Ele tem senso-prático das coisas. Sabe o que ele e as pessoas ao seu redor necessitam. E faz de tudo para colocar suas ideias mirabolantes em prática. Mas quem não têm ideias malucas? Que atire a primeira pedra.

Bem, voltando: quando a gente viajou para Salto Corumbá, ele estava com sua ex-namorada – que você já conhece de nome, pois a citei no início deste texto. Denise era uma pessoa legal. Sabia conversar. Tinha ideias interessantes, mas, algumas, sem sentido – sobretudo por sua imaturidade. Denise tinha 17 anos. Acreditava que conhecia a vida. Eu lhe dizia que não conhecia, que era bem pior do que em seus pensamentos. Hoje, vejo que fora um babaca em lhe falar isto.

Em 28 de dezembro fomos rumo a Chapada dos Guimarães, no Mato Grosso. Desta vez, estávamos mais equipados. Eu havia comprado uma garrafa de Johnnie Walker – a fim de redimir-me do modesto Passaport. O uísque fomos bebericando na viajem, com o intuito de acelerá-la.

Era uma odisseia, bicho.

Na Chapada, encontramos alguns gringos. Conversei com um peruano que vendia alguns artesanatos na praça principal. Como eu estava meio bêbado, confundia-me com os idiomas. Ora falava em espanhol, ora em português.

Zé chamou-me no canto, e disse:

“Bicho, a gente tem de tomar aquele ácido.”

“Pois é”, falei.

“Ou, é hoje, cara.”

“Ai, sim. Gostei de ver.”

Dei um sorriso.

“Foda são os pais da Denise.”

“Que têm eles?”

“Rata, cara.”

“Que nada, moss”, me adiantei. “Eu e você tomamos essa bosta há uns quatro anos, cara.”

Zé me cortou:

“Verdade. Mas eles são meus sogros.”

“Entendo.”

“Porra nenhuma, cara”, resmungou ele.

Acendi um cigarro, e ruminei:

“Meu, já tomamos uns bagulho muito mais potente que esse, e nada aconteceu. Cara, já voltamos de a pé, de madrugada, pra casa. E nada aconteceu.”

“Mas eram outros tempos, né”, disse ele. “Não tomo isso há uns quatro, cinco meses.”

Ficamos um tempo em silencio. Denise não falou nada. Apenas fitou-nos. Sugeri pegarmos uma cerveja, no bar em frente à praça.

Abrimos a primeira. Brindamos. E fomos bebendo e conversando e rindo e contando piadas. Confesso que alguns acontecimentos estão quase apagados de minha mente. Mas lá pela sexta latinha, decidimos tomar o ácido. Íamos ficar mais dois dias, na Chapada dos Guimarães. Piramos e filosofamos. Zé é o autentico pensador da embriaguez. Ele discorre sobre assuntos existenciais, com facilidade única e rara. Talvez, ele seja um filósofo. Outro dia, estávamos bêbados, na distribuidora ao lado de seu condomínio, fazia um frio desgraçado, e o cara, sabiamente, disse: “O frio é psicológico. Cê não sente ele, só vê.” No momento, nem dei a devida atenção à frase. Mas, em seguida reconheci: de um teor filosófico sublime.

A viajem a Chapada dos Guimarães selou a amizade nossa amizade.

Voltei à casa, graças a Deus, acho. Longa história. Estava esquecendo-me de contá-la. Uma tarde – no terceiro ou quarto dia – a gente foi comprar comida num mercado próximo ao camping que estávamos. Chegamos lá. Fizemos as compras. E eu peguei quatro garrafas de Campo Largo – um vinho tinto suave, popular no sul. Quando fui colocar o cartão na máquina, deu “transação não autorizada”. Lembro-me de que um frio na espinha me tomou. “Caralho”, pensei. “Agora vou virar cidadão nativo da Chapada dos Guimarães”, ironizei. Alertei a Zé o que acontecia. Ele deu de ombros, e redarguiu: “Denise, cê vai ter que conversar com teu pai. Minha grana acabou, e a desse cavalo também.” Um homem, nessas horas, tem fé de que o dinheiro lhe prende. As coisas seriam muito mais fáceis se não houvesse grana. O mundo está pirado, e é por causa da grana. Os países querem entrar em guerra uns com os outros, e alguém sair com grana. Os pais educam seus filhos a terem, e não a serem. O mundo só vai mudar quando mudarmos nossas posturas. Não adianta clamar por revolução. Os revolucionários querem implantar seu status-quo, assim como os capitalistas que fazem a engrenagem rodar. Tudo em nome da grana, tudo pela grana, tudo pela revolução. Chega desse discurso simplista. Chega de análises tecnicistas que não condizem com a realidade. Eu quero o mundo, e o quero agora. As pessoas estão tão concentradas em seus aparatos tecnológicos que não conseguem olhar pro próximo e perceber que ele está agoniado, com o olhar triste e solitário. Não se olha mais pro horizonte, e sim pra tela dos smartphones. As relações humanas tornaram-se frívolas, fáticas e superficiais. Os homens trabalham pra ter um smartphone de última geração. Os homens comemoram quando conseguem comprar um smartphone de última geração. Os homens se ressentem quando têm seus smartphones roubados, por vítimas dessa sociedade doente.

Grande Moisés – pai de Denize. Formado em Filosofia, ele comandava um circo, em Goiânia. “O circo é o primo-pobre das artes-cênicas”, afirmava Moisés. Ele pagou minha estadia no camping, quando eu estava convicto de que viraria cidadão mato-grossense. E, hora ou outra, cairia no ostracismo. Porém, Moisés esticou-me a mão. E até hoje não lhe ressarci a grana. E tenho plena certeza de que não o farei. Lamentável. Na verdade, tenho o deplorável hábito de postergar minhas dívidas. Empresto dinheiro de todos. Com camarada, não tem problema. Está tudo certo. As pendências se revolvem numa bebedeira, no bar da esquina. Agora com desconhecidos é foda. Digo que lhes pagarei em breve. E nada. Acho que tenho a lábia boa. Bem, já disseram-me isso. Custei a acreditar. Hoje, sim, acredito. Eu tenho a porra da lábia boa. Deve ser por que na Atento – assim como na PUC – todos gostavam de gargantear vantagens. Então, eu tinha de usar minha retórica socrática pós-moderna. E dava certo. Eu discorria por minutos a fio, e prendia os receptores com minha verborragia nietzschiana, dostoievskiana e rodrigueana. E eles, inevitavelmente, ficavam impressionados comigo. Diziam que eu era inteligente, que estava desperdiçando minha inteligência e outras merda do tipo - que pareciam terem fugidas de um livro de Paulo Coelho. Era estranho, de qualquer forma.

Na faculdade, poucos haviam deleitado obras que valiam a pena, que lhes traria algum conhecimento útil. Eram apenas frases feitas, recicladas de algum jornal horrendo e fascista. Em geral, os estudantes eram ignorantes – que pressionados pelos pais -, tiveram de ir à faculdade. Que merda! Era fácil lhes calar. Alguns vociferam à plenos pulmões barbáries que agrediam os tímpanos. Esses discursos, geralmente, eram ancorados em intelectuais, como Reinaldo Azevedo. Mas não se pode generalizar. Havia gente interessante e inteligente na PUC. Poucos, mas tinham. Eu interessava-me pelas mulheres. Sentia-me acolhido por elas. Cheguei a conhecer uma garota massa no formigueiro inexpressível da PUC.

Fiquei algum tempo perambulando de bar em bar.

Aí, apareceu Bárbara. Foi tudo muito rápido. A gente descobriu algumas afinidades, mas, também, algumas diferenças que devem serem consideradas. Ela, por exemplo, adora Beatles. Eu prefiro Doors. Mas isso não impede que estabeleçamos um diálogo interessante. Bárbara se aproxima da ideia de perfeição. Olhos de ressaca, vivos, sinuosos; um verdadeiro fogaréu que rasga-lhe a alma ao meio. Corpo delineado - realçado pelo sol carioca - que lhe dá um quê sublime e pecaminoso. Ela verte sensualidade. Sei lá. Eu a adoro. Já entreguei-me a ela com devoção. Às vezes sou um idiota, como o velho e sábio Henry Miller. Entrego-me a elas, sem pensar. Porém, eu gosto de sua conversa, de sua companhia, de suas ideias, de sua mente, de estar ao seu lado e poder olhá-la à retina e dizer-lhe: “Você, Bárbara, é uma garota fantástica.” Mas nunca lhe falei essa frase, por medo de cair no senso-comum. Certamente, ela já deve ter ouvido alguém lhe dizer estas linhas humildes e solitárias, que este escritor ocioso e vagabundo e pobre escreveu, ao som de Chet Backer e John Coltrane.

Retornei às aulas. Perdi o emprego. E voltei a ser o velho e bom Beck – posto que ocupo até hoje.

Ah, Bárbara, vou ter de roubar aquela tua frase: “É a realidade, né?”

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