terça-feira, 29 de março de 2016

Rock se faz com lirismo e poesia

O Martin Cererê estava lotado. Havia gente por todos os lados. A dualidade Dionisíaca e Apolínea não era encontrada na estética das bandas. Aproximadamente 150 pessoas foram conferir os cinco grupos que se apresentaram na última quinta-feira, 24, no festival Goiânia Rock City.

Quando os Sheena Ye caminharam em direção ao palco, milhares de pessoas dirigiram-se ao teatro. Mandaram o primeiro acorde. Era um punk-rock clássico, com a linha de baixo alta e presente, guitarras com riff pesado e monótono. Pelo menos, os Sheena Ye faziam bem aquilo se propunham: som pesado, com pegadas à lá Punk e Pós-punk inglês.

“Que som repetitivo”, constatei a Gabriel.

“Verdade”, disse ele. “Percebi.”

“Punk, né”, redargui. “Todo Punk é repetitivo.”

“Aham”, respondeu de forma fática.

Levei um cigarro à boca. E sentei num banco que encontrara próximo ao bar. Aproveitei o momento para beber uma cerveja. Quando me dirigi ao balcão, assustei-me com o preço: R$ 5,00 a Heineken. A Kaiser estava mais barata: R$ 3,50. Levei as mãos ao bolso da camisa, e encontrei apenas uma cédula de R$ 10,00.

Aproximei-me do cara que comandava o bar, e disse:

“Cê não tem um Cantina da Serra, não?”

“Vinho?”, respondeu ele, com outra pergunta.

“Sim”, assenti, balançando a cabeça e chamando-o, mentalmente, de “babaca”.

“Não”, sussurrou. “A gente não vende vinho aqui.”

“Porra”, resmunguei. “Me dá uma breja, então.”

“Qual?”, desejou saber.

“Kaiser”, falei.

Retornei à mesa. Acendi outro cigarro. E esperei alguns minutos. Percebi um fluxo de pessoas indo em direção ao teatro para ver o próximo show. Eram os Chimpanzés de Gaveta, cuja apresentação estava marcada às 21h. Fiquei sentado no bar, bebericando meu cantil de uísque e observando aquele movimento.

“E essa nova banda?”, questionou Gabriel.

“Sei lá, bicho”, respondi.

Entre tragos e tragadas, um sujeito com cabelos ao estilo Jimi Hendrix, que vestia uma camiseta do The Wall do Floyd, e outras pessoas chegaram à mesa. E, logo, tiraram um baralho do bolso. Ficamos jogando truco e conversa fora. De repente, sumiram. Provavelmente, foram ver o show.

Uma garota atraente, com longos e sinuosos cabelos loiros, perguntou se podia pegar a cadeira de nossa mesa.

"Pode", indagou, apontando para a cadeira.

“Não tem ninguém aqui, não”, afirmei.

“Ah, tá”, disse. “Obrigada”, agradeceu, linda e educadamente.

Ela abrira um sorriso. Lábios beijáveis e lascivos, pensei. Ruminei uma piada, e desisti. Pareceu-me infeliz e inoportuna para o momento. Mais uma vez, beberiquei meu uísque.  Eu encontrava-me levemente embriagado, já. Por acaso, lembrei-me de um verso de Charles Baudelaire: “Embriagar-se é preciso,.” Mais de um século depois, este versos fora musicado pelo Barão Vermelho e lançado no álbum homônimo, de 2004.

Expoente da poesia em prosa do século XIX, o francês escrevera um livro de ensaios, intitulado Paraísos artificiais: O haxixe, o ópio e o vinho. Além de ser um consumidor assíduo de absinto – a fada verde – e outros entorpecentes, Baudelaire mudara a estética da poesia moderna. Simbolista, o poeta francês Paul Velary disse que Flores do Mal está ausente de engajamento político, mas encontram-se música e sensualidade na obra. “As descrições, escassas, são sempre densas de significado. Mas no livro tudo é fascinação, música, sensualidade abstrata e poderosa”, discorreu o poeta e colga de Baudelaire.

Peguei meu velho e precário LG, e olhei a hora.  Era 22h e 30 mim. Daqui trinta minutos, Overfuzz subirá ao palco para mostrar à plateia seu trabalho. Bem, dizem que o som dos caras é interessante. Sinceramente, nem estou a fim de vê-los.

“Aonde é o banheiro?”, perguntei a Gabriel.

“Só ir reto”, disse ele.

Segui na direção indicada. Andei um pouco, e encontrei-o. Acendi um cigarro. Fumei-o e prestei atenção na conversa alheia.

“A próxima banda é do satã”, alardeou um sujeito, cuja veste o denunciara.

Ressonância Mórfica vai subir ao palco à 0h. Era 23h e 57 min.

Voltei à mesa. Já era mais de 0h, e não encontrei ninguém. Fui para dentro do teatro. Realmente, o som era pesado. Parecia que a estrutura iria desabar. E o cara gritava ao microfone umas coisas muito esquisitas. Na verdade, eu nem o entendia. E os fãs dele aparentavam serem todos estranhos, com feição fechada e postura neonazista. Talvez eu tivesse em algum devaneio alcoólico e canábico. Sem compaixão, fui praticamente empurrado para dentro do teatro para “prestigiá-los”. Confesso que quase mandei um cara ir à merda, mas achei melhor manter-me em silêncio, após fitá-lo.

Saí de lá. Respirei ar puro. Três caras conversavam sobre rock and roll. Um deles disse que os Stones eram a melhor banda do mundo. Inteirei-me da conversa, e escutei:

“Stones é foda, sim”, disse um sujeito, que estava com uma camiseta cuja capa era o LP L.A Woman do Doors.

“Meu”, eu disse. “Essa tua camiseta é, simplesmente, do caralho.”

“Massa, né”, disse.

“Sim”, respondi. “Sou fã de Doors. Morrison era um vocalista do caralho.”

“Ele tinha uma puta presença de palco”, emendou.

“Não só presença de palco”, alardeei, embriagado e tentando manter-me em pé. “Morrison era poeta, cineasta. O Doors, na verdade, misturou uma porrada de elementos que os transformaram em uma das bandas mais fodas da história do rock”, discorri.

“E ele era fã de William Blake”, continuou o cara, em sua retórica igualmente bêbada e roqueira.

“E de Rimbaud, Artuad e outros gênios”, completei.

1h.

Os Mechanics de Goiânia, que segundo o vocalista é “uma banda com nome e sobrenome”, já estavam no palco.

Entrei no teatro.

Sentei no lugar mais escondido que encontrei.

Eles tocavam um som que se aproximava do hard rock americano de AC/DC e Aerosmith. Os riffs eram sincronizados. E os guitarristas, também. A música dos Mechanics tinha seus atributos. Quando acabou a passagem de som, o vocalista disse, em tom efusivo: “Só canto se tiver mais cerveja”. E eu vociferei um “vá toma no cu, seu filha da puta”.

“Não existe rock and roll sem sangue, e vocês devem saber disso”, gritou o vocalista, bêbado, confirmando minha premonição de que o ambiente era, de fato, meio esquisito. Fiquei com medo da verborragia desse demente. Até a aparência dele era assustadora. Cabelo meio grisalho. Camisa social preta, que escondia a barriga de cerveja.

Parei em frente ao Martim. Comprei um latão de Antarctica e dei um longo gole.

“Me vê um palheiro”, pedi para um senhor, que estava na porta.

Ele os esticou. Entreguei-lhe uma moeda de R$1. Agradeci e fui embora.  

Rock não se faz com sangue. Rock se faz com poesia e lirismo. Doors está aí e não me deixa mentir. 

terça-feira, 22 de março de 2016

Delírios literários ao longo do barítono de Jim Morrison

Entrei. Eu não fazia a mínima ideia de como levantar o banco. Mercedes-Benz. Pensei na canção de Janis, escrita por Michel McClure. O Banco era de couro. Preto cintilante. Pra variar, o suor escorria em minha face. Nada pra fazer. Nada pra dizer. Os homens passam a maior parte do tempo apenas executando tarefas, sem pensar. Nessas horas, fumar um baseado ajuda a colocar os pensamentos em ordem. Beber também. Como escreveu William James - o sujeito que conceituara o fluxo de consciência, imortalizado na prosa de James Joyce, Marcel Proust e Jack Kerouac: “A sobriedade diminui, discrimina e diz não; a embriaguez expande, une, e diz sim.”

Puta frase. William James – um doidão que tornou-se filosofo e psicólogo. O cara sacudiu a arte, sobretudo a literatura. Os bons são fodas, e morrem cedo. “Mesmo que o preferido dos deuses morra cedo, eles sobrevivem eternamente”, filosofou Nietzsche, em A origem da tragédia no principio da música.

Tô viajando, já.

Os vidros estavam abertos, e eu sentia o vento bater em meu rosto. E também, o incomodo sonoro. Um funk carioca triplicava o calor. E, claro, o humor se transformara rapidamente. Pensei em Hunter Thompson – o pai do jornalismo gonzo: “A música certa faz um carro sem gasolina se mover à noite.”

Thompson saiba das coisas.

“Abaixe a música, por favor”, pediu Gabriel.

“Não”, respondeu o motorista. “Nesse carro tem de ouvir funk ou sertanejo.”

Meneei minha cabeça, expressando desconforto e negatividade.

O motorista e os outros dois eram calouros de Direito, na PUC. Percebi isso, quando fitei um livrão de História do Direito na mão de um dos passageiros. Devia ter umas 400 páginas. “Cursa direito, tem carrão e cérebro minúsculo”, pensei.

Alguém comentou algo. Nem prestei atenção. Quero fumar. Quero beber. Quero meter. Quero declamar e escrever poemas. Quero, simplesmente, viver. Livre e solto. Sem regras, nem compromisso. Eu e minha mochila e alguns tostões e livros e garrafas e garotas. Pra que uma Mercedes de R$ 200 mil? À merda.

Não é você que a controla, e sim ela te controla.

O som balançava minha mente. E bagunçava meus pensamentos. Num momento, pensei que iria esquecer as coisas básicas da vida, como beber uma breja, ler um jornal e redigir um textão de putaria lírica. Psique peniana essa minha, meu. Ah, porra. Nem sei por que aceitei essa merda de carona, cara. Eu podia apanhar o coletivo, como todos os dias. Desde que entrei na faculdade, apanho-o. Qual seria o problema de apanhá-lo hoje?

Pensei na grana mesmo, bicho. Lembrei-me de uma cena de On the road, em que Keroauc e Dean abastecem o carro sem pagar pelo combustível. A mãe do vagabundo beat estava presente e ela ficara espantada: “Como diz o Presidente Truman: precisamos reduzir os custos da vida.”

“Nem dá pra correr, caralho”, esbravejou o motorista, cujo nome nem dei o trabalho de perguntar.

“É claro, né”, disse Gabriel. “Tá cheio de carro na rua.”

Gabriel até que era sensato.

“Cê vai ficar aonde?”, perguntou ele.

“Na Praça Universitária”, sussurrei.

“Aonde?”

“NA PRAÇA UNIVERSITÁRIA”, reverberei, desta vez, com veemência.

“É que o som tá alto”, justificou.

Optei pelo célebre e louvável laconismo.

Gabriel dera uma risada. Também ri, cortesmente. E segui olhando pra rua. Paramos no semáforo e um morador de rua estava deitado embaixo de uma árvore. Fiquei com meus olhos vibrados nele. Tenho apreço pelos excluídos, pelos que não gozam de uma Mercedes de R$ 200 mil, pelos que sabem que o mínimo é o excessivo. Creio que ninguém teve a sensibilidade de perceber o que se passava no outro lado da rua. Um morador de rua, sem grana, sem vergonha estava deitado às 12h. Burocratas destilam, às 12h, suas frases clichês e arrogantes, dentro de seus ternos de R$ 2,000.

Uns têm uma Mercedez. Outros um Gol. Outros, a rua. Então, digo-lhes: viva o dionisíaco e o apolíneo. A verdadeira arte necessita destes elementos. A arte necessita da psicologia do poeta trágico.

"Valeu", agradeci.

"Por nada", disse o motorista.

Delírios literários ao longo do barítono de Jim Morrison.

domingo, 20 de março de 2016

“Hoje você ouve um sertanejo que não é mais sertanejo, que não é mais samba”, diz sambista

Beth Carvalho em seu apartamento. Foto: Eduardo Zappia

“Essa coisa com Lula me preocupada”, diz a cantora e compositora Beth Carvalho, em entrevista ao EL País. Nascida em 5 de julho de 1946, ela mora em condomínio de alto padrão na zona sul do Rio de Janeiro. Vê, corriqueiramente, seus vizinhos bateram panela quando a presidente Dilma aparece em rede nacional. Um deles durante os panelaços olha em sua direção. E ela acha engraçado. Beth Carvalho é o samba. É a bossa-nova. É um traço da cultura brasileira. “Hoje você ouve um sertanejo que não é mais sertanejo, que não é mais samba.”

A cantora conversou com o EL País três dias depois de a Polícia Federal (PF) levar o ex-presidente Lula para depor, no último dia 4 de deste mês. Ela chamou a atenção para supostas conspirações dos EUA. Contudo, o centro do diálogo fora o samba. “O samba é do povo, que sofre, que sabe o que é fome”, afirma. Ela disse que o gênero é de esquerda. “O samba é da esquerda, do povo, os compositores são do povo.”

Questionada imposição de uma nova cultura, ela acredita que fora colocado hip-hop e rap nas favelas. E, com isso, parou-se de ouvir gêneros brasileiros, como o samba. “Hoje você não vê uma criança tocando tamborim, hoje você vê uma criança vestida de garoto americano, com a calça bem baixa, capuz, uma roupa que não tem nada a ver com o clima brasileiro”, diz. Beth ainda afirmou que a direita tentou ridicularizar esta declaração, mas ,como boa esquerdista que é, ela não está nem aí.

Seu último álbum, Nosso samba tá na rua, fora lançado em 2011. Recentemente, a cantora comemorou 55 anos de carreira. E teve de amargar um ano no hospital. A jornalista Maria Martín relatou que Beth, durante a entrevista, estava em cadeira de rodas – ela ainda recupera-se de grave problema na coluna.

A entrevista foi publicada neste sábado, 19, no site do EL País.

Pergunta. O que a Beth Carvalho comemora no aniversário dos 100 anos do samba?

Resposta. Comemoro os cem anos do samba e os 50, agora 51, da minha carreira. Houve um evolução grande, sobretudo. A gravação ficou muito melhor. Antigamente o som do samba era mal gravado, tecnicamente falando. As gravadoras pensavam que era botar um bando de negros lá dentro e diziam: “vamos lá, batuca aí”. As pessoas não tinham noção de que você tem que ter um microfone para o surdo, tem que ter um microfone para o tam tam, entendeu? A coisa era mal tratada pelas gravadoras. Elas não entendiam o samba. Eu,Martinho da Vila, nossos produtores, os técnicos, fomos responsáveis por essa melhora.

P. Faltava profissionalização das produtoras ou havia um certo desprezo pelo samba?

R. Tinham desprezo também. Como tudo o que é popular é alvo de desprezo. Mas tiveram que engolir, tiveram que nos engolir, porque nós fomos durante muito tempo os tentáculos das gravadoras. Podia ter disco de elite, que não vendiam nada, por causa do samba. É a mesma relação que vemos no povo brasileiro, que sustenta este país com seu trabalho, é a mesma coisa. O samba é uma coisa da esquerda, do povo, os compositores são do povo, que sofre, que sabe o que é a fome, então eu me sinto muito honrada de formar parte disso tudo.

P. O samba é um gênero machista?

R. O Brasil é machista, né? Não é só a música, mas está melhorando muito. Dona Ivone Lara se tornou a primeira mulher a fazer samba-enredo numa escola. Antes não tinha nenhuma possibilidade de mulher fazer. E, mesmo assim, ela fez sem aparecer, só depois que o nome dela foi destacado. Da minha parte também houve uma revolução. Nos anos 70, eu, Clara [Nunes] e Alcione [Nazareth] fomos as primeiras mulheres a vender muitos discos. A gente quebrou um tabu que existia. Nós fizemos esse sucesso todo e lançamos novos compositores. Eu tinha moral na produtora, podia lançar os novos e resgatar os velhos.

P. Sua filha seguiu seus passos e faz parte de uma nova geração de talentos. O que estão trazendo as novas gerações à música brasileira?

R. Está muito boa a nova geração. A Luana é compositora, sabe tudo de samba porque viveu a vida inteira comigo, mas ela não é sambista. A nova geração, e no caso da Luana, traz coisas mais sofisticadas. Mais minimalista. Não é uma música tão popular como a que eu faço, mas tem chance de acontecer.

P. Como você, defensora do popular, vê essas músicas mais sofisticadas, mais minimalistas?

R. Eu também pertenci à bossa nova durante muito tempo. A bossa nova é um braço do samba que tem sua sofisticação também. Não é que o samba não seja sofisticado, mas.... a bossa nova louvou a Zona Sul, não se falava em subúrbio, não se falava em Zona Norte. Eu sempre fui da Zona Sul, então me emocionava com aquelas músicas porque tinham a ver comigo, só que não me bastavam. Eu também quando ouvia um samba de raiz, um samba do Cartola ou do Nelson [Cavaquinho] eu me emocionava tanto quanto. Ou mais.

P. Você sente saudades da época do Cartola e do Nelson?

R. Sinto. Nelson para mim era o maior de todos. Eles sofreram muito, eram pobres, melhoraram, modéstia à parte, comigo. Muita gente pensava que o Cartola estava morto e ele veio à tona e a minha gravadora contratou ele, e passou a ter um disco por ano. Com Nelson Cavaquinho foi a mesma coisa. Não ficaram ricos, mas a vida deles melhorou bastante. Que é o justo, né?

P. Você voltou a encontrar talentos parecidos?

R. Parecidos. Mas todos da velha guarda. Há jovens bons, mas não com a capacidade deles. Mas eu sou pelo jovem, viu? Tanto que eu lancei muita gente nova. Se não o samba ia parar, né? Como vai seguir o samba então, sem inovação? Não podemos parar, por exemplo, no Paulinho da Viola, que é maravilhoso. Depois do Paulinho tem Jorge Aragão, Arlindo Cruz, Sombrinha, Zeca Pagodinho, Wanderley Monteiro... E agora já tem outra geração que é a do Alfredo Del-Penho, Sérgio Marques, Teresa Cristina... Tem muita gente aí.

P. Sua escola de samba, a Mangueira, foi campeã do desfile neste ano. O que significou isso para você?

R. Foi lindo, estávamos há tantos anos sem ganhar. A Mangueira mereceu, a [Maria] Bethânia também. O samba pegou, né? Foi o samba mais cantado da Avenida, isso já faz ganhar. Estava pensando quanto as escolas ficaram diferentes. As escolas de samba eram um lugar onde os compositores tinham sua própria ala, davam o sangue pela escola e durante o ano todo eles cantavam seus sambas. Eu cansei de gravar músicas indo na quadra, ouvindo o compositor cantando... A coisa foi mudando, acabaram com o ala dos compositores, desmotivaram eles... Já perdeu todo o sentido a escola de samba. É um absurdo não dar moral para o compositor. Os enredos eram sobre a história do Brasil, que era uma obrigação que o Getúlio Vargas impôs pelo bem da nação, e a gente estudava através do samba-enredo. Mas agora mandam os patrocinadores. Ter uma escola patrocinada por uma marca de iogurte é brincadeira. Falar sobre iogurte! Veja bem! O que que é isso? Deturparam tudo. Cartola deve estar se mexendo lá...

P. O que há de verdade nessas histórias que contam sobre o mundo das escolas ser a maior lavagem de dinheiro transmitida pela televisão?

R. Eu não posso te falar isso porque eu não sei. Mas... Tudo é possível. O [Leonel] Brizola fez a maior homenagem ao samba que foi o Sambódromo. Porque o Sambódromo era também uma lavagem de dinheiro danada, porque era a arquibancada todo ano montada. Imagina a grana que era isso. Ele não só fez um lugar fixo, como transformou em escola, em CIEP [Centro Integrado de Educação Pública] durante o ano inteiro. Havia horário integral, as crianças tinham quatro refeições, saíam da escola de banho tomado… Acabaram com isso. Hoje nossa geração deveria ser de CIEP’s e não de garotos de rua como está agora.

P. Em uma ocasião, anos atrás, você disse que a CIA pretendia acabar com o samba. O que você quis dizer?

R. A CIA está em tudo lugar, no mundo inteiro. Para dominar um país você tem que acabar com a cultura dele, essa é a teoria dos fascistas, dos Estados Unidos, principalmente. E, em termos de música, a coisa mais forte do Brasil é o samba. Melhor, é o forró, o sertanejo, o samba e o chorinho. Eles começaram a deturpar isso tudo. Hoje você ouve um sertanejo ou um samba que não é mais sertanejo, que não é mais samba.

P. Mas qual é a relação com a CIA?

R. Ela colocou o rap, o hip-hop nas favelas. Hoje você não vê uma criança tocando tamborim, hoje você vê uma criança vestida de garoto americano, com a calça bem baixa, capuz, uma roupa que não tem nada a ver com o clima brasileiro, aliás. E muitas igrejas evangélicas que são contra o samba, são contra o candomblé, contra a macumba, contra o espiritismo. E o samba vem disso. Não conseguiram acabar com essa nossa riqueza, mas a intenção é essa: um país que perde sua cultura é um país dominado. A CIA faz esse papel em todos os lugares do mundo. É claro que a direita ridicularizou essa minha declaração, mas eu continuo dando.
P. Você acha que antes as opiniões eram mais respeitadas?

R. Acho. Está muito desrespeitoso, muito violento, está uma coisa assustadora. Eles [a direita] não se conformam com perder o poder. Há discursos homofóbicos, racistas, uma coisa que a gente não via antes dessa maneira. Talvez poderia ser igual que hoje, mas a gente antes não percebia que era tanto.

P. O que você opina do chamado do Lula para sair às ruas? Isso não promove ainda mais tensão?

R. Tem que ser. É preciso lutar. Veja o que fizeram com o Chico Buarque.

P. Você gostaria que a elite musical do país fosse mais engajada politicamente?

R. Sim. Mas estão oprimidos. Tem uns que são alienados mesmo, outros que temem portas fechadas. Mas a gente vai ganhar essa luta. 2018, Lula lá.

P. Você tem várias referências ao Che Guevara e Fidel Castro na sua casa. Como você avalia o processo de abertura que está vivendo a ilha?

R. Acho justo, pelo amor de Deus. Cuba é um exemplo para a humanidade. É engraçado quando você vê que há shows em solidariedade a Cuba... Cuba é quem tem sido solidária com o mundo inteiro, inclusive com os Estados Unidos!

P. Imagino que você já deve ter visto que em Cuba há pessoas que passam fome?

R. Não vi. Estão melhores que nós, com certeza. Lá não tem miséria, não. Mas não podemos esquecer que eles são uma ilha, o embargou piorou... Não dá para fazer milagre, mas todos estão na escola, não tem uma criança na rua.

P. Falando de Lula o que te preocupa?

R. É um absurdo o que esta acontecendo. É inconstitucional. É um tiro no pé da direita, porque o povo se comoveu com isso. Então vai ter povo na rua. Se me chamarem, e eu puder, eu vou também. Me preocupa a inconstitucionalidade. Como é que faz uma coisa dessas? Não podem te levar da tua casa com a Polícia Federal sem te comunicar. Foi arbitrário. Eu não temo as investigações, Lula é inocente.

P. E o Rio dos Jogos Olímpicos, como você está vendo a preparação do evento e o futuro legado?

R. Aff! Estão fazendo de tudo para derrubar o Rio de Janeiro, né? Botaram até mosquito aqui dentro. Isso é guerra bacteriana, na minha opinião. Os Estados Unidos são capazes de tudo. Eles fazem isso na água de Cuba, botam dengue aí.

P. Você acha que o Zika é....

R. É para desmoralizar o Brasil. O pior é que a gente fica com a porra do mosquito aqui, né? Eles querem a Olimpíada para eles, não para um país como o nosso. É uma briga eterna. O legado estou achando bom, a população vai poder aproveitar algumas coisas, só não pode tirar pobres do seu lugar. Tira, mas coloca em outro lugar.


quarta-feira, 16 de março de 2016

O antes e o depois de Cabeça Dinossauro



Há 30 anos, os Titãs lançavam Cabeça Dinossauro. O disco revolucionou o rock nacional com letras fortes e estética punk. “Com Cabeça Dinossauro os Titãs encontram uma maneira objetiva”, disse Paulo Miklos. “Devo confessar que quando falamos em fazer um arranjo ou uma canção à la Titãs, é no Cabeça Dinossauro que pensamos”, afirmou Sérgio Britto, autor de Homem Primata, Aa Uu, Porrada e Bichos Escritos. De fato, o Cabeça está presente na coleção de vinil de todo fã de rock nacional que se prese. No primeiro acorde do disco se constata o porquê o álbum entrou para a história da música nacional.

Em 1986, Cabeça Dinossauro trouxe ao rock nacional temas polêmicos, de uma forma direta e simples. Os integrantes procuram Liminha, que deu uma aula de rock ao grupo. À época, ele era responsável pelos maiores sucessos da indústria fonográfica, além de ter sido integrante de Os Mutantes, na década anterior. Liminha mostrou como um produtor pode mudar a imagem de uma banda, sem fazê-la perder a identidade. Assim, a pegada new wave, presente nos dois primeiros trabalhos do grupo, foi substituída pela linguagem punk.

Em entrevista à Folha de São Paulo, Sérgio Britto reconheceu o trabalho do produtor. “O Liminha foi o responsável pela realização do nosso maior sonho: gravar com qualidade, liberdade e em altíssimo astral”, disse. Durante as gravações do álbum, Arnaldo Antunes e Tony Belloto foram presos por porte de heroína e compuseram Polícia. “Polícia para quem precisa/ Polícia para quem precisa de polícia”, canta Sérgio Britto. O conjunto também criticou a igreja e o estado, em Igreja. “Eu não gosto de padre/Eu não gosto de madre/Eu não gosto de frei/ Eu não gosto de bispo/Eu não gosto de Cristo/Eu não digo amém.”

Outros estilos foram explorados pela banda. Canções como Família, Bichos Escrotos, O quê e Cabeça Dinossauro sinalizam como seriam os próximos trabalhos do conjunto. Sérgio Britto revelou que a música que mais deu trabalho para ser gravada foi O quê. “A última a ser gravada foi ‘O quê’ e também a que deu mais trabalho. O arranjo mudou totalmente no estúdio, e o Liminha, aqui, teve participação decisiva: programou bateria eletrônica, sugeriu a linha de baixo, tocou guitarra e deixou a gente fazendo uma jam interminável durante dois dias até chegar o resultado final”, contou.

A gravação de Polícia também teve alguns detalhes revelados por Sérgio Britto. “Outro detalhe curioso é que gravei a voz de Polícia no primeiro take, enquanto Liminha conversava sobre pesca submarina com o Evandro Mesquita. Talvez isso tenha me ajudado a ficar mais puto ainda. Quando fomos ouvir o resultado, eu queria regravar a voz, a qualquer custo, porque tinha sido muito fácil. Todos acabaram me convencendo de que estava bom”, revelou.

Cabeça Dinossauro, obrigatória nos shows, também precisou da participação crucial de Liminha. “A percussão na faixa ‘Cabeça Dinossauro’ foi o Liminha que tocou. Depois de várias tentativas mais elaboradas, ele começou a improvisar, tocando nas paredes, no chão e nas colunas do estúdio, num espécie de transe”, disse.

Em 1997, a revista Bizz elegeu Cabeça Dinossauro o melhor álbum de pop-rock nacional. 

Texto publicado no Diário da Manhã

terça-feira, 15 de março de 2016

Olá, sou Leila Diniz

Leila Diniz com barriga à mostra. 

"Toda mulher quer ser amada. Toda mulher quer ser feliz. Toda mulher se faz de coitada. Toda mulher é meio Leila Diniz”, canta Rita Lee, em Todas as mulheres do mundo. Ela conseguiu, como poucas, através do seu comportamento libertário, mostrar que as mulheres têm de ser livres. E isso em plena ditadura militar. Tanto a atriz quanto a cantora balançaram as estruturas da moralista sociedade brasileira, na década de 1970.

Leila Diniz nasceu em 25 de março de 1945, no Rio de Janeiro. Quando tinha sete anos de idade, seus pais se separaram. Ela passou a viver com os avós paternos, e pouco tempo depois voltou a morar com o pai, que tinha casado de novo. Aos 15 anos, começou a trabalhar como professora. Nunca completou o segundo grau – hoje ensino médio –, por não se adaptar as regras dos pais dos alunos e da escola. Dois anos depois, teve sua primeira experiência como atriz, na peça “Dirigida pela tesouro”, dirigida por Domingos de Oliveira – seu marido.

O casamento de Leila e Domingos, no entanto, durou apenas três anos. Nesse momento, ela passou a trabalhar como atriz, atuando em novelas da Globo. Mas tarde, casou-se com o cineasta Ruy Guerra, com quem teve uma filha, Janaína. Gravida da menina, Leila pôs um biquíni e foi à praia de Ipanema, no Rio de Janeiro.Com a barriga à mostra chocou a todos, mas depois se viu que a atitude significou rompimento de um tabu comportamental.

A antropóloga Mirian Goldenberg, autora do livro Toda mulher tem um pouco de Leila Diniz, disse, à Agência Brasil, que o comportamento da atriz ainda continua atual. “A Leila, simplesmente, queria viver a vida dela com liberdade, com prazer, com vontade. Não foi uma militante, nem feminista. É por isso que ela é tão contemporânea. Vivia a vida com liberdade, coisa que as mulheres não fazem até hoje”, afirma. Para a antropóloga, Leila não expressava uma sexualidade para ser sexy ou sensual. “Era uma sexualidade para o prazer dela. Não é que ela não tinha preocupação, sabia que os outros julgavam e condenavam, mas ela não abria mão de viver a própria liberdade. É isso que é considerado revolucionário até hoje.”

A representante da Rede Mulher e Mídia no Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, Raquel Moreno, afirmou que a exposição da barriga foi um marco porque mostrou para as mulheres que elas não precisavam temer a gravidez. “Saiu uma turminha de feministas no Rio, entre as quais a Leila Diniz, de braços dados na calçada. Elas estavam em cinco ou seis andando e dizendo, sozinha, eu? Como assim? Que história é essa de que a mulher está sozinha na rua? Assim contestaram também a fala recorrente de que as mulheres tinham que andar acompanhadas por um homem, porque senão estavam pedindo alguma forma de violência”, lembrou Raquel Moreno.

Em 15 de novembro 1969, chegava às bancas uma edição de O Pasquim, com uma entrevista de Leila. Jaguar, que foi um dos entrevistadores, disse que Leila, de maneira natural, falou vários palavrões durante a conversa. “Era o jeito dela falar. Aí optamos por manter as características. Decidimos colocar um asterisco, entre parênteses, no lugar do palavrão. Então, a entrevista parecia uma via láctea”, disse. Após a publicação, o regime militar instaurou o decreto Leila Diniz. Perseguida, ela se escondeu no sítio do amigo e apresentador Flávio Cavalcanti. A Globo, alegando razões morais, não renovou seu contrato.

Leila Diniz morreu em 14 de julho de 1972, em acidente de avião. Ela sobrevoava Nova Délhi, na Índia, quando houve a explosão da aeronave. O falecimento da atriz causou comoção nacional e deu inicio ao mito da mulher revolucionária. “Eu sou uma explosão, mas com 100 anos vou estar maravilhosa, vou estar cada vez melhor”, acreditava a atriz.

Jaguar cogitou o que Leila poderia ter feito, se não tivesse morrido aos 27 anos. “Que legado teria deixado? Ela era absolutamente inocente e tudo que dizia era de maneira cândida. Não tinha intenção de escandalizar. Todo mundo a admirava. Mas imagine como era isso em pleno regime militar. Ela era uma mulher solar”, constatou.

As declarações foram feitas à Agência Brasil


domingo, 13 de março de 2016

Com diz o velho safado: “Estilo é o que o diferencia dos outros"

The spy. Doors, puta banda. Nos anos 60, os caras transformaram o rock. Morrison, Manzarek, Densmore e Krieger misturaram música com teatro e poesia. O resultado não podia ser diferente: uma banda do caralho. Eles fizeram a trilha sonora de toda uma geração, de toda uma juventude que praticamente fora obrigada a caminhar rumo à morte, no Vietnã. Era mais ou menos assim: ou iam pra guerra, ou estavam fodidos. Muitos optaram pela segunda opção. Daí, nasceu a contracultura. E depois veio a onda do ácido. E Woodstock. Loucura, piração, poesia, liberdade. Rock psicodélico. Doors, Cream, Jefferson Airplane, Buffalo Springfield, Janis Joplin e outros.

O jornalista Luiz Carlos Maciel, conhecido pela alcunha de “guru da contracultura”, em sua obra Os anos 60, listou a diferença entre a cultura vigente e a contracultura. Segundo Maciel, o status quo faz com que bebemos uísque, ao invés de absinto. Faz com que prefiramos cigarro a maconha. Faz com que sejamos ateus, e não místicos. Faz com que acatemos a ideia de Walter Benjamim, e não de Whillem Reich. Colocam-nos no tabuleiro sem dizer como se faz pra se mover ali. Siga as regras. Siga os medíocres. Seja uma ovelha. E o sucesso vai ser imediato. Poucos são os que têm algo pra dizer. Poucos são os que fogem do clichê, da frase feita, do lugar comum, do manjado.

Porra. Jim Morrison faz falta. Rimbaud faz falta. Henry Miller faz falta. Ginsberg faz falta. Keroauc faz falta. Raul Seixas faz falta. Os loucos fazem falta. Vivemos numa época onde ser careta é sinônimo de charme. Cadê o espírito rebelde dos jovens? Temos medo de uma boa foda, até. Outro dia, abri o site de O Globo e dei de cara com a seguinte chamada: “Sexo oral sem camisinha aumenta 22 vezes o risco de câncer na cabeça”. Curioso, cliquei na reportagem. O texto chamava os jovens à caretice. Puta merda.

Bicho, análise quantos, no ônibus, estão com o pescoço abaixado, concentrados em seus aparelhos celulares? Vários. Múltiplos. Todos me parecem abatidos, cansados, angustiados. Ninguém olha pra cara de ninguém. É tudo nas redes. O papo. O sexo. Os elogios. Poucos são os que chegam numa garota, e dizem: “Cê tá linda pra caralho”. É preferível ir ao Instragram e curtir uma foto dela. Break on Through (To the other side), como cantava Jim. Bem, hoje não são apenas as garotas que estão enclausuradas, os homens também estão. E temos medo de atravessar para o outro lado. Preferimos portar uma cédula de 100 conto a uma história bem vivida.

Além de ficarem com as melhores mulheres, eles querem fazer a cabeça da juventude. Execute, não pense, dizem a você. Se o fizer, várias coisas lhe serão prometidas, como as melhores mulheres, os melhores carros, uma carteira cheia de dinheiro. Dinheiro é uma merda. Os medíocres são uns merdas. Charles Bukowski disse que o estilo é a reposta pra tudo. No poema homônimo, ele fala que é preferível fazer algo tolo com estilo, do que algo perigoso sem estilo.

Com diz o velho safado: “Estilo é o que o diferencia dos outros.”

Texto publicado no Diário da Manhã

quarta-feira, 9 de março de 2016

Pinheiro resistente

Pinheiro Salles saiu à janela de sua casa. “Já vou abrir o portão”, me disse. “Demorou para encontrar a casa?”, perguntou, enquanto apertava minha mão. Assenti com a cabeça, afirmando que não. Ao entrar na casa, Pinheiro fora me guiando até a biblioteca, onde faríamos a entrevista:

“Vire à esquerda”, falou, apontando os dedos em direção à porta, próxima ao quintal . “Ainda bem que é à esquerda”, sussurrou. “Se fosse à direta, você iria vacilar.”

Educado e inteligente, Pinheiro me questionou, imediatamente, sobre o propósito entrevista:

“É trabalho da faculdade? “

“Sim”, respondi.

Pinheiro meneou a face, e, entre sorrisos, disse:

“Então terei de ser breve.”

“Não necessariamente. Pode falar à vontade”, falei.

Nas paredes de sua biblioteca há pôsteres de Gue Chevara, Fidel Castro e Karl Marx. Pinheiro é de esquerda, e não faz a mínima questão de esconder. “Oponho-me às forças mais rebuscadas do exercício do fascismo”, murmurou. “Sou de esquerda porque posiciono-me na palavra e na ação de cada dia a todas as formas de injustiça, de exploração, de opressão, de discriminação”, afirmou.

Ele mora numa casa agradável e tranquila no Setor Jaó. Passa horas de seu dia em frente aos livros. De vez em quando escreve algo. “Sexta-feira vou pra Bahia e depois, em julho, vou à Europa para contar sobre meu livro”, revelou. “O tradutor disse que eu tenho de ir para lá agora, porque posso morrer a qualquer tempo”, declarou, dando risadas.

Jornalista, escritor e Bacharel em Direito pela UFBA (Universidade Federal da Bahia), Pinheiro Salles não tem problema em falar sobre a ditadura militar:

“É difícil para o senhor falar sobre a ditadura”, perguntei, esperando uma resposta árdua e melancólica.

“Não, é dever”, respondeu, educadamente.

Enquanto fala, ele segura as mandíbulas. Pinheiro fora brutalmente torturado pelos militares. Ficou com sequelas. Ouve parcialmente com um ouvido. E é surdo de outro. Recentemente, passou por cirurgia para reparar a deficiência, acarretada pelas sessões de tortura.

Foi no período em que cursava Direito na UFBA que teve o primeiro contato com o movimento estudantil. Ele era membro do Partido Comunista e foi preso, no Rio Grande do Sul, no final dos anos 60. Passou nove anos encarcerado. Sua descrição me fez lembrar das cenas sádicas de 120 dias de Sodoma, do cineasta italiano, Pier Paolo Pasolini.

Uma coleção de discos empilhadas num canto da biblioteca ornavam o ambiente. Haviam clássicos da MPB, como Nara Leão, Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil. Os LP´S estavam acompanhados por uma vitrola, no canto de seu escritório. Nas prateleiras, escritores consagrados da literatura – como Rimbaud, Steinbeck e Balzac – davam um quê charmoso ao lugar.

Pinheiro Salles fora um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), em Goiás. Mas hoje, ele não vê o partido com o mesmo entusiasmo de antes. “Deu (o PT) uma contribuição significativa se a gente fizer comparações, por exemplo: os dirigentes do PT toda hora invocam isso, uma comparação com o governo de Fernando Henrique Cardoso”, disse.

Como um esquerdista clássico, o escritor criticou as manifestações que recentemente levaram milhares de pessoas às ruas de todo país. “Gente mobilizada é sempre motivo de esperança. Mas essas últimas manifestações resultaram de insatisfação das classes dominantes”, afirmou.

Em 2011, seu depoimento à CNV (Comissão Nacional da Verdade) chocou os presentes. Ele relatou, com riqueza de detalhes, as humilhações que sofrera. Como resultado de seu relato, lançou Ninguém pode se calar. Na obra, Pinheiro nos conta fatos comoventes, inefáveis, inenarráveis.

Quando encerramos a entrevista, ele me presentou com duas obras, e propôs:

“Vamos tomar um suco?”

Balancei a cabeça, e respondi:

“Sim”. 

terça-feira, 8 de março de 2016

Dinheiro é uma merda

Tenho uma forte ligação com a contracultura. Descobri Satre – pai do existencialismo – e passei a acreditar que “estamos condenados a ser livres”. O francês iniciou sua carreira acadêmica nos anos 30, quando escrevera a A imaginação – um ensaio que transita entre Filosofia e Psicologia. “A imaginação é infinita”, afirma na obra. Nesta época – década de 30 – Satre era considerado alienado por não dar a mínima à política. Ele viva bêbado, quando estudante, junto de Simone de Beauvoir, sua esposa. O casal jamais constituíra uma família aos moldes da classe média. Satre viva a perambular de hotel em hotel, escrevendo ensaios, críticas, romances, teses, peças de teatro. Nenhum intelectual produziu tanto quanto ele.

Disseram-me que não poderia experimentar drogas. “Quem usa droga merece morrer”, falou, com veemência, meu avô. Eu apenas fitei-o. E lembrei-me de uma frase de Timothy Leary – que foi psicólogo de John Lennon e guru da contracultura: “As drogas enlouquecem quem não as usa”. Por que não podemos usar drogas? Elas fazem mal? Mas o remédio que tomamos incessantemente, também, não faz mal? Assim, neste contexto de repressão, fomos descobrir as drogas. Com o tempo, passamos a ver que heroína não é legal, que cocaína pode levá-lo para o fundo do poço, que acido lisérgico (LSD) nunca levou ninguém ao hospital - a única coisa que pode acontecer se você encher a cara é pirar. E maconha, tão execrada, não causa porra nenhuma. A única coisa que ela faz é deixá-lo lesado, com o raciocínio lento.

A arte dos anos do amor fora influenciada pelo ácido lisérgico. Os hippies usavam LSD e tinham devaneios surreais. A estética acadêmica e tradicional não via com entusiasmo os beats e o fluxo de consciência deles, com períodos longos e livres. Jack Kerouac escreveu On the road em apenas três semanas. A escrita da obra é repleta de café e benzedrina. Allen Ginsberg – poeta e amigo de Keroauc – lidou com a censura, quando lançou Uivo e Outros Poemas, em 1956. A obra fora acusada de ser obscena. No Brasil, Glauber Rocha, que em suas palavras tinha “apenas uma câmera e uma ideia na cabeça“, filmou a sociedade brasileira e as amarguras dela. Glauber fazia parte da tropicália, juntamente com artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Toquarto Neto – este na poesia e aqueles na música.

O curioso é que no ácido fizeram-se grandes artistas. Mas a percepção dos eruditos não era muito otimista. E ainda assim ouve Hendrix, Doors, Joplin, Airplane e outros. Os Beatles, inclusive, chegaram a afirmar que graças a Timothy Leavy, eles fizeram White Album, em 1968. Raul Seixas cantara, em Sociedade Alternativa, o sonho de sociedade da geração do amor. Uma sociedade sem regras, leis, em que tudo era perfeito. “Viva a sociedade alternativa”, afirmava Raul na música.

Nesta época o movimento feminista crescia. Paralelo a ele, nascia à liberdade sexual. Os hippies acreditavam que o sexo com dinheiro, deixava a áurea libertadora de lado em prol do capital. Mas hoje nos habituamos a conformarmo-nos com quaisquer tipos de descriminalização, seja racial, intelectual, cultural; sempre procuramos acreditar que os nossos modos são errôneos. Deparamo-nos com preconceitos clichês. E assim fechamos os olhos. Procuramos não ver o que há na sociedade. Não fumamos maconha porque a somos discriminados. Creio incessantemente na liberdade. Somente ela livra-nos das amarras e amarguras. Não quer usar drogas, não as use. Eu até acho melhor, sabe. Quer biritar? À vontade. Você sabe o que faz, afinal é condenado a ser livre. Drogas todos usam. Contudo, algumas inventaram que são ilícitas. E outras lícitas.

A sociedade precisa da dialética e da dicotomia dos fatos. Não podemos, jamais, ter opiniões pré-fabricadas. Temos de analisar e refletir. Normam Mailer – um dos percussores do new journalism dos anos 60 – lançou, em 1965, Um sonho americano, obra que relata o modo de vida estadunidense. Mailer dera vida a Stephen Rojack, um herói de guerra, intelectual que tem o próprio programa de televisão. Além disso, ele era casado com uma bela mulher. No entanto, durante uma discussão, Rojack mata-a. E por longas páginas entramos na cabeça do protagonista. “O leitor não se entediará com Um sonho americano se tiver a paciência e senso-crítico suficientes para buscar na literatura um complemento e uma elucidação do fermento confuso de nossa era”, escreveu Paulo Francis, no prefácio da obra.


Os hippies, sim, eram sábios. Eles não queriam viver uma vida programada, com sucesso e reconhecimento profissional. Então decidiram morar em comunidades, sempre com o principio da liberdade norteando-os. Como eu queria chutar o balde. A vida é uma merda. As expectativas são uma merda. O cara que se sentou ao meu lado, com seu cigarro entre os dedos, é um merda. Todos somos uns merdas, porque vivemos uma vida que não é nossa. Nutrimos sonhos distantes. Angariamos bens materiais. Dispensamos um papo cultural. Queremos, simplesmente, a futilidade. E, se em grandes quantidades, melhor ainda. Dinheiro é uma merda.

Originalmente publicado no Diário da Manhã em algum dia de 2015

Tragédia moderna

Jim Morrison. 
“This is the end”, cantava o cantor e poeta Jim Morrison. Morto em 1971, aos 27 anos, a vida do astro do The Doors é uma tragédia moderna. Ele escreveu. Encheu a cara. E no final da vida radicou-se em Paris com a propósito de dedicar-se à poesia e livrar-se do álcool. Morrison morrera em 3 de julho de 1971, em circunstâncias misteriosas. Apenas sua namorada, Pamela Courson, viu seu corpo ser enterrado. 

O tecladista Ray Manzarek, colega de Morrison na UCLA (Universidade da Califórnia), relata que o encontrou à beira mar, em Venice, Los Angeles, com um caderno em mãos. Ao aproximar-se dele, percebera que haviam vários poemas rabiscados. A pedido de Manzarek, Morrison leu “Moonlight Drive”. O tecladista, imediatamente, reagiu: “Nós temos que formar uma banda e ganhar um milhão de dólares, cara”. Alguns meses depois, eles já eram famosos no circuito underground de Los Angeles.

Em 1967, lançaram o primeiro álbum. The Doors contava com letras que retratavam morte, violência, fim e loucura. “Light my fire”, sem dúvida, tornou-se um hit estrondoso em versão editada para single. Originalmente, a música tinha sete minutos e exibia o charme do The Doors: os longos e sinuosos riffs de teclados. “The End”, o pesadelo sonoro edipiano de onze minutos, em que Morrison diz que vai matar o pai e foder a mãe, encerra o disco. E em Break on Throught, eles anunciavam que iriam quebrar as regras, neste rock com batidas de bossa-nova.

Stranger Days. Waiting for the sun. The Soft Parade. Morrison Hotel. L.A Woman. O The Doors sacudira a sociedade de consumo estadunidense, em seus discos e apresentações. Em Ninguém sai daqui vivo, o jornalista Jerry Hopkins relata que o som do Doors, para o vocalista, era como se fosse uma catarse. “É um som para quem se sente diferente”, dizia o vocalista.

Em 1969, após ser preso por exposição indecente, Morrison concedeu entrevista a Hopkins. Durante o diálogo, eles falaram sobre poesia, música e como o vocalista/poeta tratava os limites de sua arte. A entrevista foi publicada pela Rolling Stone.

Confira:

Os Beatles e outros artistas parecem ter voltado às raízes, ao som básico... 
Sim, o country e o blues, é isso. As pessoas têm esses novos poços de informação e ideias, e isso foi bem longe. E, um dia, parou. Então, agora as pessoas estão voltando a esta forma básica de música. Obviamente, haverá uma nova síntese – provavelmente daqui a dois ou três anos. O ciclo parece ter essa duração; essa é a duração de uma geração agora.

Você quer dizer uma nova síntese entre o country e o blues? 
Não sei, cara. O rock era isso, country e blues. Há muitos outros elementos dos quais as pessoas ficaram cientes, como música indiana, oriental, africana e eletrônica. Provavelmente seria uma síntese disso, uma síntese muito louca. Acho que, nos Estados Unidos, voltamos ao blues e country porque são nossas duas formas de música nativas. Sabe o que pode acontecer? As grandes mentes musicais que tratavam de coisas clássicas podem entrar em áreas populares.

Você já tocou algum instrumento musical? 
Quando era criança, tentei piano por um tempo, mas não tinha disciplina para continuar. Tentei por uns meses. Acho que cheguei até o livro do terceiro nível.

Tem vontade de tocar um instrumento hoje? 
Na verdade, não. Toco maracas. Consigo tocar algumas músicas no piano. Só minhas invenções, então não é realmente música; é barulho. Consigo tocar uma, mas ela só tem duas mudanças, dois acordes, então é bem básica. Realmente gostaria de conseguir tocar guitarra, mas não tenho o sentimento necessário.

Como foi o começo do The Doors na gravadora Elektra? 
A Elektra na época era nova na cena do rock. Tinha o Love e a Paul Butterfield Band, que estava mais no blues e folk. O Love era a primeira banda de rock com potencial da Elektra para o mercado de singles, já que a Elektra era predominantemente uma gravadora de álbuns. Depois de contratar o Love, o presidente da empresa [Jac Holzman] nos ouviu tocar no Whisky a Go Go. Acho que ele me contou uma vez que não gostou. Ele voltou outras vezes e enfim todos na gravadora estavam convencidos de que faríamos muito sucesso. Então, nos contratou.

É verdade que você gostaria de voltar aos tempos que a banda tocava no Whisky a Go Go? 
Só digo que algumas das melhores viagens musicais que fizemos foram em clubes pequenos. Grandes shows são ótimos, mas entram em um fenômeno de multidão que realmente não tem muito a ver com a música. Em um clube, a atmosfera é diferente. Eles podem ver você suar e você consegue vê-los. E há muito menos bobagem. Em um show em estádio, você reúne muita gente e não importa tanto o que faz. Em um clube, tem de empolgar as pessoas só com a música. Se não der certo, todos percebem.

É mais difícil fracassar em um grande show? 
É quase impossível. Há a simples empolgação de estar no evento, aquela massa de gente se misturando, isso gera um tipo de eletricidade. É empolgante, mas não é exatamente sobre música. É histeria em massa.

Você já me disse que, tocando em locais menores, há a chance de compor, algo difícil quando se está em uma turnê de grandes shows. 
Certo. Além disso, gosto de trabalhar. Não há nada mais divertido do que tocar música para uma plateia. Dá para improvisar nos ensaios, mas é meio que uma atmosfera morta. Não há retorno do público. Não há tensão, na verdade, porque em um clube, com um público pequeno, você fica livre para fazer qualquer coisa. Ainda existe a obrigação de ser bom, então você não consegue ficar realmente solto; há gente olhando. Então, há essa tensão linda. Há liberdade e, ao mesmo tempo, uma obrigação de tocar bem. Posso trabalhar o dia inteiro, voltar para casa, tomar banho, trocar de roupa e fazer duas ou três apresentações no Whisky, cara, e amo isso. Amo a performance no palco do mesmo jeito que um atleta ama correr para se manter em forma.

Vocês conseguem criar algo quando improvisam? 
Sim. Veja, precisávamos de outra música para este álbum [The Soft Parade]. Estávamos queimando neurônios tentando pensar em algo. Estávamos no estúdio, então começamos a tocar várias músicas antigas. Viagens de blues. Clássicos do rock. Finalmente, começamos a tocar por uma hora. Passamos por toda a história do rock – começando com o blues, pelo rock and roll, surf music, música latina, tudo. E saiu algo. Eu a chamo de “Rock Is Dead”. Duvido que alguém escute um dia. [N.R.: “Rock Is Dead” finalmente foi lançada em The Doors Box Set (1997) ]

Recentemente foi divulgado que você havia dito que o rock estava morto. É algo em que você realmente acredita? 
É como o que falamos antes. Falei algo sobre o movimento de volta às raízes. A chama inicial se apagou. A coisa que chamam de “rock and roll” ficou decadente. Daí houve uma ressurreição do estilo promovida pelos ingleses. Aquilo foi muito longe, foi articulado. Depois, ficou olhando para si próprio, o que, acho, é a morte. O rock and roll ficou com vergonha de si, sem evoluir, e se tornou algo meio incestuoso. A energia acabou. Não existe mais uma crença.

Como reage ao que escrevem a seu respeito? 
Bem, eu pergunto: há uma coisa pior do que uma foto muito ruim? Uma foto pode fazer qualquer pessoa parecer um anjo, bobo, demônio, uma não entidade. Muito disso vem por acaso; muito é malícia e também idolatria. Uma foto ruim pode te dar vários momentos de perda psíquica real. Você sabe que não é você, mas alguém escolheu te criticar daquela forma.

Você se imagina um roqueiro a vida toda? 
É difícil dizer. Talvez eu vire um executivo de uma empresa... Meio que gosto da imagem. Escritório grande. Secretária...

Nos três primeiros álbuns, o crédito de compositor em cada faixa ia para o The Doors, em vez de ir para os indivíduos. Mas sei que a partir de agora, com o novo The Soft Parade, os compositores individuais serão listados nos álbuns. Por quê? 
No começo, eu escrevia a maioria das canções, letra e música. Em cada álbum seguinte, Robby [Krieger, guitarrista] contribuiu com mais músicas, até que finalmente em The Soft Parade tudo está dividido praticamente igual entre nós dois. Temos uma visão muito diferente da realidade, argumentos diferentes, então senti que era hora. Somos uma parceria, sabe? Artisticamente e financeiramente. Dividimos por igual. No começo, muito foi em interesse coletivo, para manter tudo unido. Agora que a unidade não está mais tanto em risco, achei que era o momento de as pessoas saberem quem estava dizendo o quê. Então, este será o primeiro disco em que daremos créditos ao compositor e acho que continuaremos fazendo isso.

Como sua visão das coisas é diferente da de Robby? A dele é, digamos, mais romântica, ou o que é? 
Não sei bem. Você terá de descobrir sozinho. Não sei mesmo. Musicalmente, como guitarrista, ele é mais complexo – mudanças de acorde, lindas melodias e tal – e minha coisa está mais na veia do blues: longa, errante, básica e primitiva. É que a diferença entre dois poetas é muito grande. Em muitas músicas no começo, eu ou Robby vínhamos com a ideia básica, letras e melodia, mas depois todo o arranjo e a gestação real da canção aconteciam noite após noite, dia após dia, em ensaios ou nos clubes. Quando viramos uma banda de grandes shows, uma banda de discos, e quando fomos contratados para lançar tantos álbuns por ano, tantos singles a cada seis meses, aquele processo natural, espontâneo e gerador não teve a chance de acontecer como era no começo. Tivemos que realmente criar músicas no estúdio. O que começou a acontecer foi que Robby ou eu vínhamos com a canção e o arranjo já completos em nossa cabeça em vez de trabalhar lentamente naquilo.

Você já declarou que gosta de fazer as pessoas se levantarem da cadeira, mas não de criar intencionalmente uma situação caótica... 
A situação nunca ficou fora de controle, na verdade. É algo bem brincalhão, mesmo. Nós nos divertimos, a garotada se diverte, a polícia se diverte. É um triângulo meio estranho. Só pensamos em subir ao palco e tocar boa música. Às vezes, eu me empolgo e excito as pessoas um pouco, mas normalmente estamos ali tentando tocar boa música. É isso. Cada vez é diferente. Há diversos graus de febre no auditório esperando por você. Daí, você sobe ao palco e encontra essa onda de energia em potencial. Nunca sabe o que será.

O que você quer dizer com “às vezes, eu me empolgo e excito as pessoas um pouco”? 
Digamos que estava testando os limites da realidade. Estava curioso para ver o que aconteceria. Era só isso: mera curiosidade.

Como você testa os limites? 
Eu simplesmente tento levar a situação o mais longe possível.

E mesmo assim não sente, em momento algum, que as coisas saíram do controle? 
Nunca. Você tem de olhar para isso de maneira lógica. Se não houvesse policiais ali, alguém tentaria subir ao palco? O que eles fariam quando conseguissem? Quando sobem, ficam muito tranquilos, não vão fazer nada. O único incentivo para subir é porque há uma barreira. Se não houvesse barreira, não haveria incentivo. É isso. Acredito firmemente nisso. Sem incentivo, sem carga. Ação e reação. Pense nos shows gratuitos no parque. Nenhuma ação, nenhuma reação. Nenhum estímulo, nenhuma resposta. Só que é interessante, porque a garotada tem uma chance de testar os policiais. Você os vê hoje, andando com suas armas e uniformes, e o policial se porta como se fosse o homem mais durão do quarteirão, e todos ficam curiosos sobre o que exatamente aconteceria se você o desafiasse. O que ele vai fazer? Acho que é uma coisa boa, porque dá aos jovens uma chance de testar a autoridade.

Há uma citação atribuída a você que aparece muito na imprensa. Diz: “Estou interessado em qualquer coisa sobre revolta, desordem, caos...” 
“... especialmente atividade que pareça não ter significado.”

Isso, essa mesmo. É outro exemplo de manipulação da mídia? Você inventou essa frase para um jornalista? 
Sim, definitivamente, criei a frase, mas tem verdade nela também. Quem não fica fascinado com o caos? Só que é mais do que isso. Estou interessado em atividade que não tenha significado, e tudo o que quero dizer com isso é atividade livre. Tocar. Atividade que não tenha nada nela exceto o que é. Nenhuma repercussão. Nenhuma motivação. Atividade... livre. Acho que deveria haver um carnaval nos Estados Unidos, como o do Rio de Janeiro. Deveria haver uma semana de hilaridade nacional... uma pausa em todo trabalho, todos os negócios, toda discriminação, toda autoridade. Uma semana de liberdade total. Seria o começo. Claro, a estrutura de poder não seria realmente alterada, mas alguém nas ruas – não sei como o escolheriam, aleatoriamente, talvez – se tornaria o presidente. Outra pessoa seria o vice. Outras seriam senadores, deputados, no tribunal superior, policiais. Só duraria uma semana e, depois, voltaria ao que era antes. Acho que precisamos disso. É. Algo assim.

Tem algum tipo de ritual que você e os membros do The Doors fazem? 
Sim, existe um ritual no sentido de que usamos os mesmos acessórios e as mesmas pessoas e as mesmas formas repetidamente. A música definitivamente é um ritual, mas não acho que esteja esclarecendo o ritual ou acrescentando qualquer coisa a ele.

Você se vê indo mais em direção à poesia, à literatura em geral? 
É minha maior esperança, meu sonho.

E quando você começou a escrever poemas? 
Ah, acho que por volta da 5a ou 6a série escrevi um chamado “The Poney Express”. É o primeiro que me lembro. Era um desses poemas tipo balada. Só que nunca consegui terminar. Sempre quis escrever, mas sempre achei que só seria bom se a mão pegasse a caneta e começasse a se mexer sem eu ter algo a ver com aquilo. Como uma escrita automática. Escrevi outros, claro. Escrevi “Horse Latitudes” quando estava no ensino médio. Guardei muitos cadernos durante o ensino médio e a faculdade e, quando saí da escola por algum motivo estúpido – talvez sábio –, joguei tudo fora. Não consigo pensar em nada que mais adoraria ter agora do que aqueles cadernos perdidos. Estive pensando em ser hipnotizado ou tomar pentatol sódico para tentar lembrar, porque escrevi naqueles cadernos noite após noite. Só que, talvez se nunca os tivesse jogado fora, nunca teria escrito algo original – porque eram principalmente acúmulos de coisas que eu tinha lido ou ouvido, como citações de livros. Acho que, se nunca tivesse me livrado deles, nunca seria livre.

O que o atraiu na poesia? 
Acho que foi quem me ensinou a falar, a conversar. De verdade. Acho que foi a primeira vez em que aprendi a falar. Até o advento da linguagem, era o toque – comunicação não verbal.

Tenho a sensação de que muitas pessoas que militam no rock não têm muito ou nenhum respeito pela forma – quero dizer, de nunca admitirem ser cantores ou músicos de rock. Em vez disso, sempre dizem que são, na verdade, músicos de jazz ou cineastas... 
Sei o que você quer dizer. Mas acho que a maioria dos músicos e cantores de rock realmente gosta do que faz. Seria psicologicamente enervante só fazer isso para ganhar dinheiro. Acho que o que estraga tudo é a besteira dita pela imprensa, pelos colunistas de fofocas e revistas para fãs. Um baterista, vocalista ou guitarrista gosta do que está fazendo e, então, de repente, todos dizem alguma besteira estranha sobre a viagem do cara. Ele começa a duvidar de sua motivação. Sempre há um grupo que atrapalha a sensibilidade. Então, você tem uma leve sensação de vergonha e frustração no que está fazendo. É uma pena, de verdade. Queria poder ser mais específico, mas acho que você entende o que eu quero dizer.
verá uma nova síntese – provavelmente daqui a dois ou três anos. O ciclo parece ter essa duração; essa é a duração de uma geração agora.

Você quer dizer uma nova síntese entre o country e o blues? 
Não sei, cara. O rock era isso, country e blues. Há muitos outros elementos dos quais as pessoas ficaram cientes, como música indiana, oriental, africana e eletrônica. Provavelmente seria uma síntese disso, uma síntese muito louca. Acho que, nos Estados Unidos, voltamos ao blues e country porque são nossas duas formas de música nativas. Sabe o que pode acontecer? As grandes mentes musicais que tratavam de coisas clássicas podem entrar em áreas populares.

Você já tocou algum instrumento musical? 
Quando era criança, tentei piano por um tempo, mas não tinha disciplina para continuar. Tentei por uns meses. Acho que cheguei até o livro do terceiro nível.
Tem vontade de tocar um instrumento hoje? 
Na verdade, não. Toco maracas. Consigo tocar algumas músicas no piano. Só minhas invenções, então não é realmente música; é barulho. Consigo tocar uma, mas ela só tem duas mudanças, dois acordes, então é bem básica. Realmente gostaria de conseguir tocar guitarra, mas não tenho o sentimento necessário.

Como foi o começo do The Doors na gravadora Elektra? 
A Elektra na época era nova na cena do rock. Tinha o Love e a Paul Butterfield Band, que estava mais no blues e folk. O Love era a primeira banda de rock com potencial da Elektra para o mercado de singles, já que a Elektra era predominantemente uma gravadora de álbuns. Depois de contratar o Love, o presidente da empresa [Jac Holzman] nos ouviu tocar no Whisky a Go Go. Acho que ele me contou uma vez que não gostou. Ele voltou outras vezes e enfim todos na gravadora estavam convencidos de que faríamos muito sucesso. Então, nos contratou.

É verdade que você gostaria de voltar aos tempos que a banda tocava no Whisky a Go Go? 
Só digo que algumas das melhores viagens musicais que fizemos foram em clubes pequenos. Grandes shows são ótimos, mas entram em um fenômeno de multidão que realmente não tem muito a ver com a música. Em um clube, a atmosfera é diferente. Eles podem ver você suar e você consegue vê-los. E há muito menos bobagem. Em um show em estádio, você reúne muita gente e não importa tanto o que faz. Em um clube, tem de empolgar as pessoas só com a música. Se não der certo, todos percebem.

É mais difícil fracassar em um grande show? 
É quase impossível. Há a simples empolgação de estar no evento, aquela massa de gente se misturando, isso gera um tipo de eletricidade. É empolgante, mas não é exatamente sobre música. É histeria em massa.

Você já me disse que, tocando em locais menores, há a chance de compor, algo difícil quando se está em uma turnê de grandes shows. 
Certo. Além disso, gosto de trabalhar. Não há nada mais divertido do que tocar música para uma plateia. Dá para improvisar nos ensaios, mas é meio que uma atmosfera morta. Não há retorno do público. Não há tensão, na verdade, porque em um clube, com um público pequeno, você fica livre para fazer qualquer coisa. Ainda existe a obrigação de ser bom, então você não consegue ficar realmente solto; há gente olhando. Então, há essa tensão linda. Há liberdade e, ao mesmo tempo, uma obrigação de tocar bem. Posso trabalhar o dia inteiro, voltar para casa, tomar banho, trocar de roupa e fazer duas ou três apresentações no Whisky, cara, e amo isso. Amo a performance no palco do mesmo jeito que um atleta ama correr para se manter em forma.

Vocês conseguem criar algo quando improvisam? 
Sim. Veja, precisávamos de outra música para este álbum [The Soft Parade]. Estávamos queimando neurônios tentando pensar em algo. Estávamos no estúdio, então começamos a tocar várias músicas antigas. Viagens de blues. Clássicos do rock. Finalmente, começamos a tocar por uma hora. Passamos por toda a história do rock – começando com o blues, pelo rock and roll, surf music, música latina, tudo. E saiu algo. Eu a chamo de “Rock Is Dead”. Duvido que alguém escute um dia. [N.R.: “Rock Is Dead” finalmente foi lançada em The Doors Box Set (1997) ]

Recentemente foi divulgado que você havia dito que o rock estava morto. É algo em que você realmente acredita? 
É como o que falamos antes. Falei algo sobre o movimento de volta às raízes. A chama inicial se apagou. A coisa que chamam de “rock and roll” ficou decadente. Daí houve uma ressurreição do estilo promovida pelos ingleses. Aquilo foi muito longe, foi articulado. Depois, ficou olhando para si próprio, o que, acho, é a morte. O rock and roll ficou com vergonha de si, sem evoluir, e se tornou algo meio incestuoso. A energia acabou. Não existe mais uma crença.

Como reage ao que escrevem a seu respeito? 
Bem, eu pergunto: há uma coisa pior do que uma foto muito ruim? Uma foto pode fazer qualquer pessoa parecer um anjo, bobo, demônio, uma não entidade. Muito disso vem por acaso; muito é malícia e também idolatria. Uma foto ruim pode te dar vários momentos de perda psíquica real. Você sabe que não é você, mas alguém escolheu te criticar daquela forma.

Você se imagina um roqueiro a vida toda? 
É difícil dizer. Talvez eu vire um executivo de uma empresa... Meio que gosto da imagem. Escritório grande. Secretária...

Nos três primeiros álbuns, o crédito de compositor em cada faixa ia para o The Doors, em vez de ir para os indivíduos. Mas sei que a partir de agora, com o novo The Soft Parade, os compositores individuais serão listados nos álbuns. Por quê? 
No começo, eu escrevia a maioria das canções, letra e música. Em cada álbum seguinte, Robby [Krieger, guitarrista] contribuiu com mais músicas, até que finalmente em The Soft Parade tudo está dividido praticamente igual entre nós dois. Temos uma visão muito diferente da realidade, argumentos diferentes, então senti que era hora. Somos uma parceria, sabe? Artisticamente e financeiramente. Dividimos por igual. No começo, muito foi em interesse coletivo, para manter tudo unido. Agora que a unidade não está mais tanto em risco, achei que era o momento de as pessoas saberem quem estava dizendo o quê. Então, este será o primeiro disco em que daremos créditos ao compositor e acho que continuaremos fazendo isso.

Como sua visão das coisas é diferente da de Robby? A dele é, digamos, mais romântica, ou o que é? 
Não sei bem. Você terá de descobrir sozinho. Não sei mesmo. Musicalmente, como guitarrista, ele é mais complexo – mudanças de acorde, lindas melodias e tal – e minha coisa está mais na veia do blues: longa, errante, básica e primitiva. É que a diferença entre dois poetas é muito grande. Em muitas músicas no começo, eu ou Robby vínhamos com a ideia básica, letras e melodia, mas depois todo o arranjo e a gestação real da canção aconteciam noite após noite, dia após dia, em ensaios ou nos clubes. Quando viramos uma banda de grandes shows, uma banda de discos, e quando fomos contratados para lançar tantos álbuns por ano, tantos singles a cada seis meses, aquele processo natural, espontâneo e gerador não teve a chance de acontecer como era no começo. Tivemos que realmente criar músicas no estúdio. O que começou a acontecer foi que Robby ou eu vínhamos com a canção e o arranjo já completos em nossa cabeça em vez de trabalhar lentamente naquilo.

Você já declarou que gosta de fazer as pessoas se levantarem da cadeira, mas não de criar intencionalmente uma situação caótica... 
A situação nunca ficou fora de controle, na verdade. É algo bem brincalhão, mesmo. Nós nos divertimos, a garotada se diverte, a polícia se diverte. É um triângulo meio estranho. Só pensamos em subir ao palco e tocar boa música. Às vezes, eu me empolgo e excito as pessoas um pouco, mas normalmente estamos ali tentando tocar boa música. É isso. Cada vez é diferente. Há diversos graus de febre no auditório esperando por você. Daí, você sobe ao palco e encontra essa onda de energia em potencial. Nunca sabe o que será.

O que você quer dizer com “às vezes, eu me empolgo e excito as pessoas um pouco”? 
Digamos que estava testando os limites da realidade. Estava curioso para ver o que aconteceria. Era só isso: mera curiosidade.

Como você testa os limites? 
Eu simplesmente tento levar a situação o mais longe possível.

E mesmo assim não sente, em momento algum, que as coisas saíram do controle? 
Nunca. Você tem de olhar para isso de maneira lógica. Se não houvesse policiais ali, alguém tentaria subir ao palco? O que eles fariam quando conseguissem? Quando sobem, ficam muito tranquilos, não vão fazer nada. O único incentivo para subir é porque há uma barreira. Se não houvesse barreira, não haveria incentivo. É isso. Acredito firmemente nisso. Sem incentivo, sem carga. Ação e reação. Pense nos shows gratuitos no parque. Nenhuma ação, nenhuma reação. Nenhum estímulo, nenhuma resposta. Só que é interessante, porque a garotada tem uma chance de testar os policiais. Você os vê hoje, andando com suas armas e uniformes, e o policial se porta como se fosse o homem mais durão do quarteirão, e todos ficam curiosos sobre o que exatamente aconteceria se você o desafiasse. O que ele vai fazer? Acho que é uma coisa boa, porque dá aos jovens uma chance de testar a autoridade.
Há uma citação atribuída a você que aparece muito na imprensa. Diz: “Estou interessado em qualquer coisa sobre revolta, desordem, caos...” 
“... especialmente atividade que pareça não ter significado.”

Isso, essa mesmo. É outro exemplo de manipulação da mídia? Você inventou essa frase para um jornalista? 
Sim, definitivamente, criei a frase, mas tem verdade nela também. Quem não fica fascinado com o caos? Só que é mais do que isso. Estou interessado em atividade que não tenha significado, e tudo o que quero dizer com isso é atividade livre. Tocar. Atividade que não tenha nada nela exceto o que é. Nenhuma repercussão. Nenhuma motivação. Atividade... livre. Acho que deveria haver um carnaval nos Estados Unidos, como o do Rio de Janeiro. Deveria haver uma semana de hilaridade nacional... uma pausa em todo trabalho, todos os negócios, toda discriminação, toda autoridade. Uma semana de liberdade total. Seria o começo. Claro, a estrutura de poder não seria realmente alterada, mas alguém nas ruas – não sei como o escolheriam, aleatoriamente, talvez – se tornaria o presidente. Outra pessoa seria o vice. Outras seriam senadores, deputados, no tribunal superior, policiais. Só duraria uma semana e, depois, voltaria ao que era antes. Acho que precisamos disso. É. Algo assim.

Tem algum tipo de ritual que você e os membros do The Doors fazem? 
Sim, existe um ritual no sentido de que usamos os mesmos acessórios e as mesmas pessoas e as mesmas formas repetidamente. A música definitivamente é um ritual, mas não acho que esteja esclarecendo o ritual ou acrescentando qualquer coisa a ele.

Você se vê indo mais em direção à poesia, à literatura em geral? 
É minha maior esperança, meu sonho.

E quando você começou a escrever poemas? 
Ah, acho que por volta da 5a ou 6a série escrevi um chamado “The Poney Express”. É o primeiro que me lembro. Era um desses poemas tipo balada. Só que nunca consegui terminar. Sempre quis escrever, mas sempre achei que só seria bom se a mão pegasse a caneta e começasse a se mexer sem eu ter algo a ver com aquilo. Como uma escrita automática. Escrevi outros, claro. Escrevi “Horse Latitudes” quando estava no ensino médio. Guardei muitos cadernos durante o ensino médio e a faculdade e, quando saí da escola por algum motivo estúpido – talvez sábio –, joguei tudo fora. Não consigo pensar em nada que mais adoraria ter agora do que aqueles cadernos perdidos. Estive pensando em ser hipnotizado ou tomar pentatol sódico para tentar lembrar, porque escrevi naqueles cadernos noite após noite. Só que, talvez se nunca os tivesse jogado fora, nunca teria escrito algo original – porque eram principalmente acúmulos de coisas que eu tinha lido ou ouvido, como citações de livros. Acho que, se nunca tivesse me livrado deles, nunca seria livre.

O que o atraiu na poesia? 
Acho que foi quem me ensinou a falar, a conversar. De verdade. Acho que foi a primeira vez em que aprendi a falar. Até o advento da linguagem, era o toque – comunicação não verbal.

Tenho a sensação de que muitas pessoas que militam no rock não têm muito ou nenhum respeito pela forma – quero dizer, de nunca admitirem ser cantores ou músicos de rock. Em vez disso, sempre dizem que são, na verdade, músicos de jazz ou cineastas... 

Sei o que você quer dizer. Mas acho que a maioria dos músicos e cantores de rock realmente gosta do que faz. Seria psicologicamente enervante só fazer isso para ganhar dinheiro. Acho que o que estraga tudo é a besteira dita pela imprensa, pelos colunistas de fofocas e revistas para fãs. Um baterista, vocalista ou guitarrista gosta do que está fazendo e, então, de repente, todos dizem alguma besteira estranha sobre a viagem do cara. Ele começa a duvidar de sua motivação. Sempre há um grupo que atrapalha a sensibilidade. Então, você tem uma leve sensação de vergonha e frustração no que está fazendo. É uma pena, de verdade. Queria poder ser mais específico, mas acho que você entende o que eu quero dizer.