Poeta
de rua desde 2004, Francisco Dourado, 48 anos, é andarilho há 20. Sentado à
minha esquerda, ele vestia camisa social azul, calça caqui e botas de roceiro. Francisco saiu da igreja da PUC, na área 2, e veio em minha direção, sorrindo e
filosofando sobre a vida. “Quem controla os pensamentos?”, indagou o poeta.
Eu
estava a caminho de casa e parei para beber uma água. Na verdade, as
circunstâncias me assustam e eu estou puto com elas.
Queria
estar inspirado, parar de pensar depravações e ter alguém para segurar minha
mão ao atravessar a rua. Tudo bem: sou um fodido. Aceitei isso. Já faz um
tempo. Eu preciso ter assunto. Voltar à criatividade e escrever coisas alegres
para as pessoas – especialmente às que amo e me amam.
Direciono
um olhar para Francisco. Ao fundo, um cara estava concentradíssimo em seu
smartphone. Mais um burguês desgraçado que jamais compreenderá a fome ou a
pobreza. Francisco falava, mas apenas eu lhe dava ouvidos. Enquanto ele
declamava poemas, passei a observá-lo. Por atrás do seu olhar, havia humanidade
e esperança.
Esperto
e vivido, o poeta me perguntou por que eu estava calado:
“A
vida tá foda”, reclamei.
“Que
nada, bicho”, falou. “Foda é ser fodido pela barreira econômica que há entre as
pessoas”.
“Verdade”,
concordei, meneando a cabeça.
Dei
um trago no palheiro, e ele perguntou:
“É
mulher?”
“Mais
ou menos, bicho”, respondi.
“Não
se preocupe: sempre há uma saída.”
De
repente ele me contou que um conhecido escreveu sobre sua poesia. O texto foi
publicado no site da UNB (Universidade Nacional de Brasília), mas Francisco
disse que boa parte da entrevista acabou sendo inventada pelo repórter. Sem
condições financeiras para processar o jornalista, ele foi levando dia após
dia, como Jack Keroauc ao atravessar os EUA, sem dinheiro, e depois mandou a
matéria para um amigo, em Uberlândia, que é doutor em Direito.
“Esses
dias acessei o site da UBN, mas não encontrei porra nenhum lá”, afirmou. “Será
que meu amigo conseguiu fazer algo?”
Curioso,
perguntei:
“Qual
era o foco da entrevista?”
“Minha
poesia... eu sempre fui poeta marginal, de rua, vagabundo mesmo. Aí o repórter,
em determinado trecho da matéria, disse que eu não amava meu irmão”, relatou,
tragando o palheiro e ficando em silêncio. “Eu amo meu irmão, cara. Nunca
falaria um negócio desses”.
“Foda”,
falei.
“Sabe:
eu amo as pessoas, mas não tenho necessidade de ficar perto delas. Eu posso
ficar de anos um amigo, e ainda assim irei amá-lo”, disse Francisco. “Não sou
possessivo”, completou.
Ele
é mais um dos milhares que passam longe dos holofotes. Artista de rua e
andarilho, Francisco já perambulou em Brasília, Uberlândia e Goiânia, onde faz
da rodoviária sua casa. “Às vezes eu chego nos lugares e as pessoas fingem que
não me veem”, desabafa.
Minutos
depois, o segurança da igreja pediu para ele tirar sua mochila, que estava no chão
do templo. O poeta assinalou com o dedo polegar, e disse que dali alguns instantes a tiraria de lá.
Apreensivo, o sujeito afirmou que não iria se responsabilizar por nenhum dano
que acontecesse. “Minha mochila é barata, toda fodida, porque daí ninguém
rouba”, contou, sorrindo. “Andar com mochila nova, de marca, com couro não sei
de onde, não dá certo. Já, já te roubam”, aconselhou.
Francisco
declamou alguns poemas. Eis trecho de um deles:
Avante, avante
Com sua fé
Constante
Conversamos
por aproximadamente 40 minutos. Na verdade, a primeira impressão que tive foi
de desconfiança. Ele, acostumado com a vida nas ruas, sabe que eu fiquei
receoso. Não importa. Antes de ir embora, dei-lhe um abraço com ternura e agradeci
pelas sábias e confortantes palavras.
Desculpe-me
Fernando Sabino, mas eu queria que minha crônica fosse assim: pura como
Francisco, o poeta andarilho.