Bowie em 1972 |
O jornalista Timothy Ferris conversou o cantor David
Bowie, em 1972. Publicada pela Rolling Stone, a entrevista é considerada uma
das melhores concedidas pelo músico. Nela, Bowie relatou o incidente que
culminou na disparidade em seus olhos.“Fiquei de cama tanto tempo depois
disso, com as operações no olho e tudo mais. Por causa de um único movimento
perdi sete ou oito meses”, disse o cantor. Depois do ocorrido, ele ficou
cauteloso. “Isso me tornou bem pacifista”, afirma. Durante briga na escola,
Bowie levou um soco nos olhos, que acabou custando-lhe parte da visão. Autor de
clássicos como The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders of Mars e
Ziggy Stardust, Bowie, à época da entrevista, estava em Cleveland, nos EUA
Ferris abre o texto
descrevendo a peculiaridade em torno dos olhos do artista. “Um olho é
verde, o outro alterna entre verde e laranja”, relata. Questionado sobre os
rumos que rock iria tomar, se esquivou. “É muito difícil determinar que rumo
esta nova era do rock vai tomar. Há definitivamente algum tipo de nova era
surgindo... Há uma volta do espírito do entretenimento. Mas há também uma
mistura de relevância social, é bem difícil determinar se os próximos artistas
vão existir como figuras ainda maiores por causa do mérito como entretenimento
ou se terão esse status grandioso por causa de algum tipo de valor social mais
nobre”, ponderou.
Recentemente, o último álbum de Bowie virou minissérie. A
obra apresenta interpretações visuais de Blackstar. O músico havia cedido à roteirista
e à produtora, Carolyne Cecilia e Nikki Borge, às músicas do disco. Após sua morte, discutiu-se que Blackstar fora planejado como uma espécie de
adeus. A hipótese se sustenta em evidências que foram encontradas na letra de
Lazarus, no encarte e até mesmo o nome do álbum.
Bowie morreu em 11 de janeiro.
Confira a entrevista:
Um olho é verde, o outro alterna entre verde e laranja. As
botas são de um vermelho brilhante, com saltos de mais de 6 centímetros. A
blusa é laranja e transparente. O cabelo, tingido da cor de uma cenoura
lustrosa, é empinado reto acima de sobrancelha. David Bowie já era magro antes
de chegar à América do Norte e perdeu mais peso desde então; sua pele lisa
parece esticada, ligando cada osso como se fosse um fio de telégrafo passando
por cada poste. Ele muda de expressão constantemente, como o vento soprando
sobre a superfície de um lago, como eletricidade estática. Tudo na aparência
parece extremo. Ele está sentado reto em uma poltrona no quarto de hotel em
Cleveland. Do outro lado da janela há vários prédios novos – parece o
mostruário de uma construtora. Dois repórteres – um de um jornal local, outro
da revista Creem – entrevistam Bowie. Ele responde com uma voz suave, quase um
murmúrio. Encara o interlocutor, depois olha para o chão. Tudo em seu
comportamento parece moderado.
“Você acha que toda a cena bissexual da Inglaterra deve
muito a Ray Davies?”, pergunta o Sr. Cream. “Acho que sempre houve uma cena
bissexual na Inglaterra”, diz Bowie. “Eu sei, mas quero dizer, por ter trazido
isso à tona”, o repórter insiste.
O Sr. Jornal de Cleveland interrompe: “Davies não fica
falando disso, entretanto. Ele parece ter se esquivado do assunto. Em duas
entrevistas específicas que li, ele evitava falar a respeito.” Bowie completa:
“Não é algo que cabe a mim interpretar”.
“O grande enredo por trás de ‘Five Years’, como surgiu?”,
diz o Sr. Jornal de Cleveland.
“É...”
“É obviamente uma ficção científica, uma coisa futurista,
mas como surgiu o lance de decidir que o mundo iria terminar em cinco anos?”
“Aquela tinha sido uma tarde ruim.”
“Você compõe a maioria das músicas no piano?”
“Em tardes ruins.”
“Qual a história por trás da frase ‘I wanted TV but I got T.
Rex’ (‘Queria TV mas só tinha T. Rex’)?
De onde veio essa música?”
“Foi escrita para Marc Bolan. Foi a primeira que compus para
outra pessoa. A banda deles estava a ponto de se separar e eu disse para não
fazerem isso, porque achava que era muito boa. Falei que escreveria um single de
sucesso para ele. E escrevi. Foi fácil.”
Criado em bairros barra pesada no sul de Londres, David
Jones é filho do relações públicas de um orfanato. Um único soco em uma briga
quase lhe custou o olho esquerdo. A cirurgia preservou parte da visão, mas o deixou
com a pupila paralisada. O reflexo de luz forte no fundo da retina faz com que
o olho pareça laranja ou dourado, como o de um gato pego pelo farol de um
carro. “Isso me tornou bem pacifista”, diz Bowie. “Fiquei de cama tanto tempo
depois disso, com as operações no olho e tudo mais. Por causa de um único
movimento perdi sete ou oito meses.”
Ele abandonou a Bromley Technical High School, passou por
uma fase infeliz como artista comercial em uma agência de publicidade, formou
um grupo chamado David Jones and the Lower Third e lançou um álbum. Quando o
David Jones da banda Monkees ganhou proeminência, o David Jones de Bromley
mudou o sobrenome para Bowie, que também é o nome de um tipo de faca.
Intermitentemente por alguns anos, Bowie se apresentou com a
trupe de mímicos de Lindsay Kemp. Ele diz que a experiência foi importante para
ajudá-lo a criar a performance de rock altamente estilizada que executa hoje.
Na Inglaterra, fez um show que incorporava mímicos maquiados, mas não os trouxe
para a turnê americana por causa dos custos.
Bowie é vago quanto a idade, mas fica claro que está no meio
de seus 20 e poucos anos e que tem atuado nos palcos de um jeito ou de outro
por mais de um quarto da vida. Já
gravou cinco álbuns, incluindo The Man Who Sold the World e dois pela
RCA, Hunky Dory e The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders of Mars.
Debates sobre bissexualidade à parte, Bowie é ao mesmo tempo gay e
casado com a esposa. Eles têm um filho, Zowie.
David Bowie e a esposa chegaram a bordo do Queen Elizabeth
II e pegaram o ônibus rumo a Cleveland. Bowie não gosta de voar, mas descobriu
que gostava do ônibus Greyhound; frequentemente o cantor sentava sozinho nos
fundos, escrevendo suas músicas ou observando a paisagem pela janela. Os
primeiros shows tiveram reações dúbias da crítica. Alguns resenhistas pareceram
desapontados por Bowie não ser uma espécie de Super Alice Cooper, uma rainha do
rock gay e um degenerado elétrico o tempo todo. Uns poucos momentos no palco
podem ter contentado essas almas – como quando Bowie se ajoelha e faz um tipo
de sexo oral na guitarra de Mick Ronson – mas, no geral, todos eles tiveram que
encarar: não houve ninguém desmunhecando no palco.
Assim, as avaliações variaram enormemente. A minha foi que
Bowie é a figura mais forte a surgir no rock em anos. É um daqueles artistas
que comandam com facilidade o olhar do público a cada movimento no palco. Em
sua teatralidade controlada, sua habilidade de transmitir versos altamente
comprimidos e na ansiedade constante que consegue fazer brotar na plateia, me
lembra Bob Dylan. Ele absorveu Dylan, os Beatles, Elvis e mais meia dúzia de
outros, mas o que emerge disso é substancialmente dele próprio.
O show tem todo um fator de espetáculo. Os Spiders from Mars
usam trajes colados e luminescentes, cabelos tingidos e riffs precisos. Bowie
não para de se mexer, fazendo poses reminiscentes de dúzias de outros roqueiros
mais antigos e se comporta muito como um fantoche. Apesar de toda essa
preparação, o show retém muito de espontaneidade em uma época em que os
concertos da maior parte das grandes estrelas atuais parecem enlatados.
Bowie conseguiu fazer apresentações em Cleveland e Memphis
antes de ser alcançado por uma gripe. Quando chegou ao Carnegie Hall, já estava
com febre. A gripe havia progredido para um estágio desgastante quando visitei
Bowie em seu quarto no Plaza alguns dias depois. Ele respondeu às perguntas
como alguém gripado responderia. O olhar voltado para o vazio por um longo
tempo, seguido de uma sequência preocupada de palavras. “Não sou um intelectual
em hipótese nenhuma”, ele disse, fungando. “Fiquei muito preocupado quando vi
algumas propagandas pré-turnê sobre mim nos Estados Unidos, que me citavam como
fazendo parte de algum tipo de intelligentsia new wave. Também não sou primitivo.
Me descreveria como um pensador tátil. Vou pegando as coisas... Sou uma pessoa
fria. Uma pessoa muito fria. Tenho um impulso lírico, emocional forte e não sei
bem de onde isso vem. Não tenho certeza se sou mesmo eu que transpareço nas
músicas. Elas saem e eu as ouço depois e penso, bem, quem quer que tenha
escrito isso tinha um sentimento muito forte quanto ao tema delas. Não consigo
ter sentimentos assim tão fortes. Fico anestesiado. Me vejo andando por aí
anestesiado. Sou meio que um homem de gelo.”
Psicologia à parte, Bowie falou sobre as dificuldades de
mapear sua carreira como A Estrela dos Anos 70. “É muito difícil determinar que
rumo esta nova era do rock vai tomar. Há definitivamente algum tipo de nova era
surgindo... Há uma volta do espírito do entretenimento. Mas há também uma
mistura de relevância social, é bem difícil determinar se os próximos artistas
vão existir como figuras ainda maiores por causa do mérito como entretenimento
ou se terão esse status grandioso por causa de algum tipo de valor social mais
nobre.”