domingo, 28 de fevereiro de 2016

Em entrevista, Bowie fala sobre cirurgia nos olhos e música

Bowie em 1972

O jornalista Timothy Ferris conversou o cantor David Bowie, em 1972. Publicada pela Rolling Stone, a entrevista é considerada uma das melhores concedidas pelo músico. Nela, Bowie relatou o incidente que culminou na disparidade em seus olhos.“Fiquei de cama tanto tempo depois disso, com as operações no olho e tudo mais. Por causa de um único movimento perdi sete ou oito meses”, disse o cantor. Depois do ocorrido, ele ficou cauteloso. “Isso me tornou bem pacifista”, afirma. Durante briga na escola, Bowie levou um soco nos olhos, que acabou custando-lhe parte da visão. Autor de clássicos como The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders of Mars e Ziggy Stardust, Bowie, à época da entrevista, estava em Cleveland, nos EUA

Ferris abre o texto descrevendo a peculiaridade em torno dos olhos do artista. “Um olho é verde, o outro alterna entre verde e laranja”, relata. Questionado sobre os rumos que rock iria tomar, se esquivou. “É muito difícil determinar que rumo esta nova era do rock vai tomar. Há definitivamente algum tipo de nova era surgindo... Há uma volta do espírito do entretenimento. Mas há também uma mistura de relevância social, é bem difícil determinar se os próximos artistas vão existir como figuras ainda maiores por causa do mérito como entretenimento ou se terão esse status grandioso por causa de algum tipo de valor social mais nobre”, ponderou.

Recentemente, o último álbum de Bowie virou minissérie. A obra apresenta interpretações visuais de Blackstar. O músico havia cedido à roteirista e à produtora, Carolyne Cecilia e Nikki Borge, às músicas do disco. Após sua morte, discutiu-se que Blackstar fora planejado como uma espécie de adeus. A hipótese se sustenta em evidências que foram encontradas na letra de Lazarus, no encarte e até mesmo o nome do álbum.

Bowie morreu em 11 de janeiro. 

Confira a entrevista:

Um olho é verde, o outro alterna entre verde e laranja. As botas são de um vermelho brilhante, com saltos de mais de 6 centímetros. A blusa é laranja e transparente. O cabelo, tingido da cor de uma cenoura lustrosa, é empinado reto acima de sobrancelha. David Bowie já era magro antes de chegar à América do Norte e perdeu mais peso desde então; sua pele lisa parece esticada, ligando cada osso como se fosse um fio de telégrafo passando por cada poste. Ele muda de expressão constantemente, como o vento soprando sobre a superfície de um lago, como eletricidade estática. Tudo na aparência parece extremo. Ele está sentado reto em uma poltrona no quarto de hotel em Cleveland. Do outro lado da janela há vários prédios novos – parece o mostruário de uma construtora. Dois repórteres – um de um jornal local, outro da revista Creem – entrevistam Bowie. Ele responde com uma voz suave, quase um murmúrio. Encara o interlocutor, depois olha para o chão. Tudo em seu comportamento parece moderado.

“Você acha que toda a cena bissexual da Inglaterra deve muito a Ray Davies?”, pergunta o Sr. Cream. “Acho que sempre houve uma cena bissexual na Inglaterra”, diz Bowie. “Eu sei, mas quero dizer, por ter trazido isso à tona”, o repórter insiste.

O Sr. Jornal de Cleveland interrompe: “Davies não fica falando disso, entretanto. Ele parece ter se esquivado do assunto. Em duas entrevistas específicas que li, ele evitava falar a respeito.” Bowie completa: “Não é algo que cabe a mim interpretar”.

“O grande enredo por trás de ‘Five Years’, como surgiu?”, diz o Sr. Jornal de Cleveland.

“É...”

“É obviamente uma ficção científica, uma coisa futurista, mas como surgiu o lance de decidir que o mundo iria terminar em cinco anos?”

“Aquela tinha sido uma tarde ruim.”

“Você compõe a maioria das músicas no piano?”

“Em tardes ruins.”

“Qual a história por trás da frase ‘I wanted TV but I got T. Rex’ (‘Queria TV mas só tinha T. Rex’)? 
De onde veio essa música?”

“Foi escrita para Marc Bolan. Foi a primeira que compus para outra pessoa. A banda deles estava a ponto de se separar e eu disse para não fazerem isso, porque achava que era muito boa. Falei que escreveria um single de sucesso para ele. E escrevi. Foi fácil.”

Criado em bairros barra pesada no sul de Londres, David Jones é filho do relações públicas de um orfanato. Um único soco em uma briga quase lhe custou o olho esquerdo. A cirurgia preservou parte da visão, mas o deixou com a pupila paralisada. O reflexo de luz forte no fundo da retina faz com que o olho pareça laranja ou dourado, como o de um gato pego pelo farol de um carro. “Isso me tornou bem pacifista”, diz Bowie. “Fiquei de cama tanto tempo depois disso, com as operações no olho e tudo mais. Por causa de um único movimento perdi sete ou oito meses.”

Ele abandonou a Bromley Technical High School, passou por uma fase infeliz como artista comercial em uma agência de publicidade, formou um grupo chamado David Jones and the Lower Third e lançou um álbum. Quando o David Jones da banda Monkees ganhou proeminência, o David Jones de Bromley mudou o sobrenome para Bowie, que também é o nome de um tipo de faca.

Intermitentemente por alguns anos, Bowie se apresentou com a trupe de mímicos de Lindsay Kemp. Ele diz que a experiência foi importante para ajudá-lo a criar a performance de rock altamente estilizada que executa hoje. Na Inglaterra, fez um show que incorporava mímicos maquiados, mas não os trouxe para a turnê americana por causa dos custos.

Bowie é vago quanto a idade, mas fica claro que está no meio de seus 20 e poucos anos e que tem atuado nos palcos de um jeito ou de outro por mais de um quarto da vida. Já gravou cinco álbuns, incluindo The Man Who Sold the World e dois pela RCA, Hunky Dory e The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders of Mars. Debates sobre bissexualidade à parte, Bowie é ao mesmo tempo gay e casado com a esposa. Eles têm um filho, Zowie.

David Bowie e a esposa chegaram a bordo do Queen Elizabeth II e pegaram o ônibus rumo a Cleveland. Bowie não gosta de voar, mas descobriu que gostava do ônibus Greyhound; frequentemente o cantor sentava sozinho nos fundos, escrevendo suas músicas ou observando a paisagem pela janela. Os primeiros shows tiveram reações dúbias da crítica. Alguns resenhistas pareceram desapontados por Bowie não ser uma espécie de Super Alice Cooper, uma rainha do rock gay e um degenerado elétrico o tempo todo. Uns poucos momentos no palco podem ter contentado essas almas – como quando Bowie se ajoelha e faz um tipo de sexo oral na guitarra de Mick Ronson – mas, no geral, todos eles tiveram que encarar: não houve ninguém desmunhecando no palco.

Assim, as avaliações variaram enormemente. A minha foi que Bowie é a figura mais forte a surgir no rock em anos. É um daqueles artistas que comandam com facilidade o olhar do público a cada movimento no palco. Em sua teatralidade controlada, sua habilidade de transmitir versos altamente comprimidos e na ansiedade constante que consegue fazer brotar na plateia, me lembra Bob Dylan. Ele absorveu Dylan, os Beatles, Elvis e mais meia dúzia de outros, mas o que emerge disso é substancialmente dele próprio.

O show tem todo um fator de espetáculo. Os Spiders from Mars usam trajes colados e luminescentes, cabelos tingidos e riffs precisos. Bowie não para de se mexer, fazendo poses reminiscentes de dúzias de outros roqueiros mais antigos e se comporta muito como um fantoche. Apesar de toda essa preparação, o show retém muito de espontaneidade em uma época em que os concertos da maior parte das grandes estrelas atuais parecem enlatados.

Bowie conseguiu fazer apresentações em Cleveland e Memphis antes de ser alcançado por uma gripe. Quando chegou ao Carnegie Hall, já estava com febre. A gripe havia progredido para um estágio desgastante quando visitei Bowie em seu quarto no Plaza alguns dias depois. Ele respondeu às perguntas como alguém gripado responderia. O olhar voltado para o vazio por um longo tempo, seguido de uma sequência preocupada de palavras. “Não sou um intelectual em hipótese nenhuma”, ele disse, fungando. “Fiquei muito preocupado quando vi algumas propagandas pré-turnê sobre mim nos Estados Unidos, que me citavam como fazendo parte de algum tipo de intelligentsia new wave. Também não sou primitivo. Me descreveria como um pensador tátil. Vou pegando as coisas... Sou uma pessoa fria. Uma pessoa muito fria. Tenho um impulso lírico, emocional forte e não sei bem de onde isso vem. Não tenho certeza se sou mesmo eu que transpareço nas músicas. Elas saem e eu as ouço depois e penso, bem, quem quer que tenha escrito isso tinha um sentimento muito forte quanto ao tema delas. Não consigo ter sentimentos assim tão fortes. Fico anestesiado. Me vejo andando por aí anestesiado. Sou meio que um homem de gelo.”

Psicologia à parte, Bowie falou sobre as dificuldades de mapear sua carreira como A Estrela dos Anos 70. “É muito difícil determinar que rumo esta nova era do rock vai tomar. Há definitivamente algum tipo de nova era surgindo... Há uma volta do espírito do entretenimento. Mas há também uma mistura de relevância social, é bem difícil determinar se os próximos artistas vão existir como figuras ainda maiores por causa do mérito como entretenimento ou se terão esse status grandioso por causa de algum tipo de valor social mais nobre.”


terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

A deusa de um metro e cinquenta e cinco

Essa deusa de um metro e cinquenta e cinco
Que canta maravilhosamente bem
Está enclausurada num muro que criaram
Bem, há nela o suficiente para deixar-me alegre e louco
E eu fico louco em sua presença
Sou possuído por uma vontade de adorá-la e contemplá-la

Nela, sinto a pureza da vida
Ela é dócil
Essa deusa de um metro e cinquenta e cinco
Faz-me rir
E em sua presença
Esqueço que no mundo
Há barbáries e crueldades

Seus olhos de águia
Abençoáveis e admiráveis
Expressam suas inseguranças e medos e receios
Os idiotas cobiçam-na
E eu digo-lhe para afastar-se deles:

“Todo homem é gentil quando está afim de uma mulher”, pondero

Um rio de melancolia
Nasce no fundo de sua retina
Essa deusa de um metro e cinquenta e cinco
É a garota mais estonteante e sensível do universo

Em sua companhia sinto a pureza das coisas
Conto piadas
Só pra vê-la sorrir
Seu sorriso é delicado e leve
E equilibra o universo
Quando ela se entristece
Tenho uma insensata vontade de gritar:
“Ela é incrível, gente”

Essa deusa de um metro e cinquenta e cinco
Chama-se Letícia
E é sensacional

Marcus Vinícius Beck