Conheci José no primeiro semestre do curso de Jornalismo.
“Cê me arruma um cigarro”, foi a primeira frase que ele me disse. Dei-lhe meu
último Marlboro Light. “Valeu”, agradeceu. Em seguida, trocamos algumas
palavras. E descobrimos que tínhamos afinidade. Gostávamos do mesmo som: The
Doors, Pink Floyd, Janis Joplin, Jefferson Airplane, Tim Maia, Novos Baianos e
Nação Zumbi. Dentro de pouco tempo, já éramos grandes amigos. Curtíamos Medos e delírios em Las Vegas, e éramos
fãs de Hunter Thompson. As pessoas sempre perguntavam há quanto tempo nos
conhecíamos. “Eu achava que era há, no mínimo, uns quatro, cinco anos”, afirmou
Denise, ex-namorada de Raphael.
O primeiro semestre da faculdade foi tranquilo. Novas experiências, novas
pessoas que entraram e saíram de minha vida, novas ideias, novos pensamentos,
novas leituras. Era um mundo que despontava a mim. E eu queria pegá-lo. Eu
queria absorver e semear conhecimento. Nesse semestre, tive uma professora
simplesmente sensacional, de Linguagem e Comunicação. Graças a ela, mergulhei
de cabeça na leitura dos grandes clássicos da literatura. E pratiquei alucinadamente a escrita. Falavam-me que escrevia bem, que eu tinha de seguir carreira
literária, que meu texto era potente, que as coisas que habitualmente colocava
no papel eram do caralho. Estas afirmações foram como um murro bem ao meio da
face. Um escritor não pode dar-se ao luxo de se achar muito bom. Na verdade, ele
já se acha muito bom. Um escritor que não é publicado, acha-se um gênio
porque ninguém o publica. O que é publicado também se acha um gênio, mas por
outros motivos: seu livro saíra da gaveta.
Os escritores flutuam sobre a mesma
merda.
Eu não era nenhum dos dois. Porém, sobrevoava, com afinco, a
merda. Encontrava-me num processo de amadurecimento literário. Eu queria fazer
algo diferente, algo maior que a vida, talvez. Eu queria unir música e
literatura, porque as frases tem ritmo, tem molejo, tem melodia e harmonia.
Então, eu dedicava algumas horas de meu tempo, essencialmente ocioso, à leitura
de clássicos. Devorei Proust, Nietzsche, Hemingway, Fitzgerald, Thomas Mann,
Henry Miller, Jack Keroauc, Guimarães Rosa, Satre, Hunter Thompson – que li e
reli para tentar achar o ritmo alucinado de sua prosa.
Antes, eu aspirara ser músico. Toquei guitarra por alguns
anos. Cheguei a fazer algumas apresentações em público. Todavia, descobri que
há gente mais talentosa que eu pra música. E o mundo não precisa de mais um
idiota segurando uma guitarra. Meu pai ficou puto. É até compreensível. Ele havia
me dado uma stratocaster, da Gianinni. Deve ter pagado uns 500 paus, mais ou
menos. Tenho o instrumento até hoje, mas nem o toco.
Meu negócio é a escrita. Quando o mundo está desabando sobre
a minha cabeça, eu sento e escrevo. Às vezes, bebo um trago pra coisa fluir
mais fácil. Outro dia me perguntaram como se dá meu processo de escrita. Eu
disse que só preciso sentar-me em frente ao computador, acender um baseado,
colocar um Miles Davis ou Howlin Wolf, beber um trago e o resto o teclado faz.
Notei - após minha descrição - que a pessoa se espantara com minha
espontaneidade. Fazer o quê? Quem força a escrita não deve jamais escrever. O
texto fica maçante, chato e pedante. Ninguém merece.
Porra, falei demais. Pra variar, claro. Dizem que sou
introvertido. Até sou, acredita? Mas na companhia das pessoas que não tenho
muita afinidade. Com as mulheres converso mais. Sinto-me mais seguro na
companhia delas.
Em minha família, poucas pessoas concluíram um curso
superior. Alguns diziam que era perda de tempo estudar. Ainda bem que descobri - muito novo - a poesia e ela estimulou-me a sonhar, a ultrapassar a janela e
abraçar o mundo. “O negócio é trabalhar pra ganhar grana”, alardeavam meus
parentes. Penso o contrário. A academia é importante, mas pro que quero fazer,
nem tanto. O ofício de escritor exige apenas o ócio criativo. Contudo, para o jornalismo a academia é fundamental. Os professores ensinam
noções de ética e técnica, que irão guiar-lhe o resto de sua vida profissional.
Ninguém te ensina a escrever, tampouco a viver. E a literatura transita entre
estes dois mundos: o empírico e o intelectual. O jornalismo, por sua vez,
distancia-se um pouco: ele é empírico e real – mas algumas reportagens misturam
técnicas literárias.
Meu desanimo fez com que eu trancasse a faculdade no início
do terceiro período. Havia, também, alguns livros malucos, o que bem pode ter
acentuado minha vontade. Eu andava lendo Dostoievski e Satre – em abundância.
Antes de abandonar Jornalismo, eu havia escrito um ensaio filosófico,
intitulado de Dinheiro é uma merda. Pra você ter uma ideia de como
andava minha mente, cara. Pensando bem, acho que foi uma boa coisa eu ter me
ausentado da PUC. Eu estava cansado. Não aguentava a conversa daquelas pessoas.
Todos queriam ser melhores do que os outros. Todos me pareciam tristes e sem
vida, dentro de seus carros, que foram dados por seus pais – detentores de
algum cargo de importância, cujo salário devia ser uns 20 mil, no Ministério Público.
Aí, desfilavam sua esquizofrenia tecnológica, fomentada pelos aparelhos de
última geração que empunham à mão. Mediam conhecimento. Reverberavam
explicações tecnicistas sobre a vida, sobre o mundo. E eu apenas seguia em
frente, como Dean Moriarty – célebre personagem de On the Road.
Quando soube da novidade, Zé indagou:
“Cê vai trancar mesmo, brother?”
“Vou, bicho”, respondi. “Não tenho saco pra ir mais um
semestre naquela merda.”
“E eu vou ficar rodado lá.”
“Preciso arrumar um trampo”, expliquei. “A coisa tá feia pra
meu lado. Meu pai disse que vai me
expulsar de casa se encontrar mais um
baseado em minhas coisas.”
“Cê tá fodido, hein, cara.”
“Nem me fale.”
“Tá rolando aquelas desculpinhas, tipo: não vou fumar maconha
nunca mais na vida?”, perguntou Raphael, gargalhando.
“Tá, acredita?”
“Sim. Sei como é. Conheço teu pai, cara.”
Em um mês, eu já havia arrumado um trampo. Era atendente num
call-center. Prestava serviços ao banco BMG. Trabalhava na Atento, das 14h50 às
21h10. A priori, consegui provar pro meu pai que eu podia desempenhar uma
função qualquer, numa empresa qualquer. Mas lá percebi que os homens perdem
muito tempo de suas vidas com atividades inúteis, dando dinheiro pra gente
desprezível, mesquinha e adeptas do juízo de que quanto menos se pensar – e se
questionar – melhor. A gente tem de acordar cedo, lavar o rosto, defecar,
mijar, banhar-se, escovar os dentes, fumar, ir pra faculdade, almoçar,
embriagar-se, ir trampar e, no final do dia, chegar em casa, cansado. Não há
tempo pra nada. E, ainda, temos de apertar as mãos do chefe e saudá-lo,
com algum comentário medíocre: “muito obrigado pela oportunidade”.
Mas eu estava lá por outras razões. Eu queria acumular
experiências. Eu queria viajar. Eu queria ter minha grana. Eu queria
experimentar o que todos já experimentaram, e o que eu, um simples estudante de
Jornalismo, demorei a conhecer: o labor.
Passei o período de experiência. Fui efetivado. Seguia minha
rotina normalmente. As sextas-feiras, parava no porcão, na 84, enchia a cara
até o bar fechar e ia embora, trôpego. Sempre eu e Zé. Embriagados, traçávamos
planos de como articular um plano de viajem digno com nossas condições financeiras.
Não somos ricos, nem pobres. Mas não temos grana pra esbanjar por aí. Em 2 de
novembro, partimos rumo a Salto Corumbá. Pra dois quebrados, nada mal. Fomos
armados até os dentes. 50 gramas de beque, 25 pra cada, repartido na bagagem.
Uma garrafa de uísque de péssima procedência e algumas caixas de Bávaria, cuja
quantidade nem me lembro. E três ácidos, que tomamos contemplando as cachoeiras.
Ficamos três ou quatro dias - não me recordo com exatidão. Sei, somente, que
faltei no trampo. E contei alguma história pra minha chefe, que, com
toda razão, não gostara nada, nada, nada. Mas voltei, porra. Ela queria o quê?
Fiz meu trabalho, certinho. Um mês depois, vieram as férias. Zé já não
frequentava a faculdade. “Não consigo, cara”, contava ele. “Acho que me cansei
de lá. E outra: não faço merda nenhuma”, concluía, esbanjando sua invejável sabedoria.
Zé é o melhor cara que você pode ter ao seu lado numa
viajem. Ele tem senso-prático das coisas. Sabe o que ele e as pessoas ao seu
redor necessitam. E faz de tudo para colocar suas ideias mirabolantes em
prática. Mas quem não têm ideias malucas? Que atire a primeira pedra.
Bem, voltando: quando a gente viajou para Salto Corumbá, ele
estava com sua ex-namorada – que você já conhece de nome, pois a citei no
início deste texto. Denise era uma pessoa legal. Sabia conversar. Tinha ideias
interessantes, mas, algumas, sem sentido – sobretudo por sua imaturidade.
Denise tinha 17 anos. Acreditava que conhecia a vida. Eu lhe dizia que não
conhecia, que era bem pior do que em seus pensamentos. Hoje, vejo que fora um
babaca em lhe falar isto.
Em 28 de dezembro fomos rumo a Chapada dos Guimarães, no Mato
Grosso. Desta vez, estávamos mais equipados. Eu havia comprado uma garrafa de Johnnie Walker – a fim de redimir-me
do modesto Passaport. O uísque fomos bebericando na viajem, com o intuito de
acelerá-la.
Era uma odisseia, bicho.
Na Chapada, encontramos alguns gringos. Conversei com um
peruano que vendia alguns artesanatos na praça principal. Como eu estava meio
bêbado, confundia-me com os idiomas. Ora falava em espanhol, ora em português.
Zé chamou-me no canto, e disse:
“Bicho, a gente tem de tomar aquele ácido.”
“Pois é”, falei.
“Ou, é hoje, cara.”
“Ai, sim. Gostei de ver.”
Dei um sorriso.
“Foda são os pais da Denise.”
“Que têm eles?”
“Rata, cara.”
“Que nada, moss”, me adiantei. “Eu e você tomamos essa bosta
há uns quatro anos, cara.”
Zé me cortou:
“Verdade. Mas eles são meus sogros.”
“Entendo.”
“Porra nenhuma, cara”, resmungou ele.
Acendi um cigarro, e ruminei:
“Meu, já tomamos uns bagulho muito mais potente que esse, e
nada aconteceu. Cara, já voltamos de a pé, de madrugada, pra casa. E nada
aconteceu.”
“Mas eram outros tempos, né”, disse ele. “Não tomo isso há
uns quatro, cinco meses.”
Ficamos um tempo em silencio. Denise não falou nada. Apenas
fitou-nos. Sugeri pegarmos uma cerveja, no bar em frente à praça.
Abrimos a primeira. Brindamos. E fomos bebendo e conversando
e rindo e contando piadas. Confesso que alguns acontecimentos estão quase
apagados de minha mente. Mas lá pela sexta latinha, decidimos tomar o ácido.
Íamos ficar mais dois dias, na Chapada dos Guimarães. Piramos e filosofamos. Zé
é o autentico pensador da embriaguez. Ele discorre sobre assuntos existenciais,
com facilidade única e rara. Talvez, ele seja um filósofo. Outro dia,
estávamos bêbados, na distribuidora ao lado de seu condomínio, fazia um frio
desgraçado, e o cara, sabiamente, disse: “O frio é psicológico. Cê não sente
ele, só vê.” No momento, nem dei a devida atenção à frase. Mas, em seguida
reconheci: de um teor filosófico sublime.
A viajem a Chapada dos Guimarães selou a amizade nossa
amizade.
Voltei à casa, graças a Deus, acho. Longa história. Estava
esquecendo-me de contá-la. Uma tarde – no terceiro ou quarto dia – a
gente foi comprar comida num mercado próximo ao camping que estávamos. Chegamos
lá. Fizemos as compras. E eu peguei quatro garrafas de Campo Largo – um vinho tinto suave, popular no sul. Quando fui colocar o cartão na máquina, deu “transação
não autorizada”. Lembro-me de que um frio na espinha me tomou. “Caralho”,
pensei. “Agora vou virar cidadão nativo da Chapada dos Guimarães”, ironizei.
Alertei a Zé o que acontecia. Ele deu de ombros, e redarguiu: “Denise, cê vai
ter que conversar com teu pai. Minha grana acabou, e a desse cavalo também.” Um
homem, nessas horas, tem fé de que o dinheiro lhe prende. As coisas seriam
muito mais fáceis se não houvesse grana. O mundo está pirado, e é por causa da
grana. Os países querem entrar em guerra uns com os outros,
e alguém sair com grana. Os pais educam seus filhos a terem, e não a serem. O
mundo só vai mudar quando mudarmos nossas posturas. Não adianta clamar por
revolução. Os revolucionários querem implantar seu status-quo, assim como os
capitalistas que fazem a engrenagem rodar. Tudo em nome da grana, tudo pela
grana, tudo pela revolução. Chega desse discurso simplista. Chega de análises
tecnicistas que não condizem com a realidade. Eu quero o mundo, e o quero
agora. As pessoas estão tão concentradas em seus aparatos tecnológicos que não
conseguem olhar pro próximo e perceber que ele está agoniado, com o olhar
triste e solitário. Não se olha mais pro horizonte, e sim pra tela dos
smartphones. As relações humanas tornaram-se frívolas, fáticas e superficiais.
Os homens trabalham pra ter um smartphone de última geração. Os homens
comemoram quando conseguem comprar um smartphone de última geração. Os homens
se ressentem quando têm seus smartphones roubados, por vítimas dessa sociedade
doente.
Grande Moisés – pai de Denize. Formado em Filosofia, ele
comandava um circo, em Goiânia. “O circo é o primo-pobre das artes-cênicas”,
afirmava Moisés. Ele pagou
minha estadia no camping, quando eu estava convicto de que viraria cidadão
mato-grossense. E, hora ou outra, cairia no ostracismo. Porém, Moisés
esticou-me a mão. E até hoje não lhe ressarci a grana. E tenho plena certeza de
que não o farei. Lamentável. Na verdade, tenho o deplorável hábito de postergar
minhas dívidas. Empresto dinheiro de todos. Com camarada, não tem problema.
Está tudo certo. As pendências se revolvem numa bebedeira, no bar da esquina.
Agora com desconhecidos é foda. Digo que lhes pagarei em breve. E nada. Acho
que tenho a lábia boa. Bem, já disseram-me isso. Custei a acreditar. Hoje, sim,
acredito. Eu tenho a porra da lábia boa. Deve ser por que na Atento – assim
como na PUC – todos gostavam de gargantear vantagens. Então, eu tinha de usar minha retórica socrática
pós-moderna. E dava certo. Eu discorria por minutos a fio, e prendia os
receptores com minha verborragia nietzschiana, dostoievskiana e rodrigueana. E
eles, inevitavelmente, ficavam impressionados comigo. Diziam que eu era
inteligente, que estava desperdiçando minha inteligência e outras merda do tipo
- que pareciam terem fugidas de um livro de Paulo Coelho. Era estranho, de
qualquer forma.
Na faculdade, poucos haviam deleitado obras que valiam a pena,
que lhes traria algum conhecimento útil. Eram apenas frases feitas, recicladas
de algum jornal horrendo e fascista. Em geral, os estudantes eram ignorantes –
que pressionados pelos pais -, tiveram de ir à faculdade. Que merda! Era fácil
lhes calar. Alguns vociferam à plenos pulmões barbáries que agrediam os
tímpanos. Esses discursos, geralmente, eram ancorados em
intelectuais, como Reinaldo Azevedo. Mas não se pode generalizar. Havia gente
interessante e inteligente na PUC. Poucos, mas tinham. Eu interessava-me pelas
mulheres. Sentia-me acolhido por elas. Cheguei a conhecer uma garota massa no
formigueiro inexpressível da PUC.
Fiquei algum tempo perambulando de bar em bar.
Aí, apareceu Bárbara. Foi tudo muito rápido. A gente
descobriu algumas afinidades, mas, também, algumas diferenças que devem serem consideradas. Ela, por exemplo, adora Beatles. Eu prefiro Doors. Mas isso não
impede que estabeleçamos um diálogo interessante. Bárbara se aproxima da ideia
de perfeição. Olhos de ressaca, vivos, sinuosos; um verdadeiro fogaréu que
rasga-lhe a alma ao meio. Corpo delineado - realçado pelo sol carioca - que lhe
dá um quê sublime e pecaminoso. Ela verte sensualidade. Sei lá. Eu a adoro. Já
entreguei-me a ela com devoção. Às vezes sou um idiota, como o velho e sábio
Henry Miller. Entrego-me a elas, sem pensar. Porém, eu gosto de sua conversa,
de sua companhia, de suas ideias, de sua mente, de estar ao seu lado e poder
olhá-la à retina e dizer-lhe: “Você, Bárbara, é uma garota fantástica.” Mas
nunca lhe falei essa frase, por medo de cair no senso-comum. Certamente, ela já
deve ter ouvido alguém lhe dizer estas linhas humildes e solitárias, que este
escritor ocioso e vagabundo e pobre escreveu, ao som de Chet
Backer e John Coltrane.
Retornei às aulas. Perdi o emprego. E voltei a ser o velho e
bom Beck – posto que ocupo até hoje.
Ah, Bárbara, vou ter de roubar aquela tua frase: “É a realidade,
né?”