De Mount Tam a Woodstock: um olhar sobre a época
ensandecida que possibilitou a existência de eventos como Coachella e
Lollapalooza
por DAVID BROWNE
Como costuma acontecer com momentos importantes, foi bem
discreto – dá até para dizer que foi curioso. No decorrer de dois dias, em
1967, cerca de 40 mil fãs foram até um parque estadual no alto do monte
Tamalpais, ao norte de São Francisco, Estados Unidos. Chegaram a pé, de carro e
em ônibus escolares fretados, acomodaram-se ao sol e fumaram maconha enquanto
assistiam ao line-up de bandas que incluía The Doors, The Byrds e Captain
Beefheart. Os ingressos custavam US$ 2, e um balão gigante com uma imagem de
Buda recebia o público. A cada noite, o show tinha que parar ao anoitecer,
porque o parque não tinha eletricidade. Era o início da era hippie, então boa
parte do pessoal ainda tinha cabelos curtos e vestia camisa com colarinho. De
acordo com o executivo de rádio Tom Rounds, um dos organizadores, a segurança
se resumia a “guardas do parque e naturalistas falando sobre folhas de
pinheiro”. Depois, uma manchete em um jornal local afirmou: “Hippies merecem
elogios por bom comportamento”
Apenas nove dias antes, os Beatles tinham lançado a
obra-prima Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Eles mudaram a
música. Mas, à sua própria maneira, aquela reunião em Mount Tam – conhecida
oficialmente como Fantasy Fair and Magic Mountain Music Festival – criou algo
tão profundo quanto o álbum: o primeiro festival de rock de verdade.
Na era de Coachella, Bonnaroo e Lollapalooza (este último
realizado desde 2012 em São Paulo, com sucesso), grandes festivais são parte
integrante da paisagem pop. Mas, até o Verão do Amor, a ideia de milhares de
fãs de rock reunidos em espaços abertos para ouvir um elenco variado de
artistas era algo inédito. Entre 1967 e meados da década de 1970, os festivais
ao ar livre se tornaram pilares de alguns dos momentos mais cruciais do rock –
Jimi Hendrix colocando fogo na própria guitarra em Monterey, Sly and the Family
Stone criando um clima de êxtase em Woodstock com “I Want to Take You Higher”,
Bob Dylan de terno branco para sair da aposentadoria no Isle of Wight Festival,
em 1969. Eles eram a concretização da ideia de uma comunidade rock and roll; os
triunfos e os erros desses eventos passaram a ser lições objetivas para o
festival de rock moderno.
Pelo menos em parte, o objetivo dos festivais era sanar alguns problemas dos
shows de rock da década de 1960. Em uma apresentação dos Rolling Stones no Cow
Palace, em São Francisco, em 1966, Tom Rounds observou, desolado,
jovens fãs (alguns com apenas 13 anos de idade) saltando cheios de animação as
grades em frente ao palco e logo sendo recolhidos por seguranças e mandados de
volta para o meio do público – e às vezes direto para o chão de concreto da
casa de espetáculos. “A gente ouvia o som de algo sendo esmagado, e era
aterrador”, relembra Rounds. “Eu me lembro de dizer a um dos meus colegas: ‘Tem
que existir um jeito melhor de fazer isso. Que tal ao ar livre?’” Daí nasceu a
Fantasy Fair, inicialmente um evento de arrecadação de fundos para ações
beneficentes e de promoção para a estação de rádio de Rounds, a KFRC.
Mais ou menos na mesma época, Lou Adler, empresário de
bandas e diretor da Dunhill Records, teve uma conversa com John Phillips e Cass
Elliot, do The Mamas and the Papas, e com Paul McCartney a respeito de
festivais de jazz e folk como os realizados em Newport, nos Estados Unidos. A
conversa passou para como “o rock and roll não era considerado uma forma de
arte do jeito que o jazz era”, diz Adler. Pouco depois, Adler e Phillips
criaram um plano ambicioso: três dias de pop, rock e soul no Monterey County
Fairgrounds, na Califórnia, com capacidade para 7 mil pessoas.
A dupla falou com os amigos músicos para ter ideias a
respeito de quem incluir na apresentação. McCartney sugeriu Hendrix; Andrew
Loog Oldham, empresário dos Stones, disse que eles deveriam contratar o The
Who. Problemas de visto impediram a presença do The Kinks e de Donovan e, até hoje,
ninguém sabe dizer com certeza se o Doors foi convidado ou não. Para compensar
a ausência de nomes da Motown (de acordo com Adler, ninguém sabia como entrar
em contato com Berry Gordy), Otis Redding foi chamado. No decorrer de três dias
cheios de harmonia, músicos conviveram no backstage, comendo lagosta e filé
enquanto a multidão com assentos marcados – que no final somou mais de 50 mil
pessoas – assistia a tudo, de Grateful Dead a Lou Rawls. “Foi civilizado”,
lembra Chris Hillman, do Byrds, que se apresentou e também caminhou pelo local
com John Entwistle, do The Who. “Foi o retrato perfeito do espírito de paz e
amor de meados da década de 1960.”
Também foi a primeira vez que muitas das próprias bandas
puderam ver os colegas ao vivo. “Estávamos ao lado do palco e Hendrix estava
mexendo as mãos como se houvesse chamas, como se fosse algum tipo de coisa
espiritual estranha”, diz Grace Slick, do Jefferson Airplane. “E depois ele
colocou a guitarra no chão e tocou fogo!” Lou Adler tinha ouvido dizer que o The
Who poderia detonar todo o equipamento, mas, mesmo assim, saiu correndo para o
palco para salvar a bateria de Keith Moon quando a banda começou a destruir os
instrumentos no fim do show. “Nós sabíamos como eram as apresentações deles na
Inglaterra, mas aqui foi em outro nível”, recorda Adler. “Todo mundo ficou
tentando salvar algo.”
As notícias positivas a respeito de Monterey se espalharam
com rapidez. Robbie Robertson, da The Band, cruzou com Brian Jones, dos Rolling
Stones, que tinha saído vagando como se tivesse sido beatificado pelo festival.
“Ele disse que realmente era um evento adorável e extraordinário”, conta
Robertson, “e que os músicos eram fantásticos, um após o outro.” Promotores de
rock novatos ouviram os mesmos relatos e, no decorrer dos dois anos seguintes,
festivais com line- -ups espetaculares passaram a acontecer com certa
regularidade.
Michael Lang, um promoter de 23 anos, ficou tão inspirado
por Monterey que organizou o primeiro Miami Pop Festival, evento de dois dias
em 1968 que foi atrapalhado pela chuva no segundo dia. Mas ele tinha planos
ainda maiores. No sítio de Max Yasgur, algumas horas ao norte da cidade de Nova
York, ele e os outros organizadores esperavam que cerca de 200 mil pessoas se
deslocassem até lá para o Woodstock Music & Art Fair, em agosto de 1969.
Apareceu o dobro desse número. O artista encarregado pelo show de abertura, o
perturbado cantor e compositor Tim Hardin, mudou de ideia no último minuto
(Richie Havens foi convencido a substituí- -lo e Hardin cantou à noite). O Jeff
erson Airplane teve que esperar nos bastidores durante quase 12 horas antes de
subir ao palco. “Não foi a precisão espetacular do Monterey Pop Festival”,
afirma Grace. Ao chegar de helicóptero, Robbie Robertson viu o mar de gente. “A
coisa toda parecia estonteante”, ele descreve. “Ninguém no mundo tinha feito
antes um festival daquela escala.” Aqueles três dias também registraram uma
overdose de heroína, 33 prisões por causa de drogas e milhares de invasores que
não pagaram pelo ingresso. Sair acabou sendo mais difícil do que entrar: o
carro da The Band teve de ser arrastado pela lama por um guincho. Mesmo com os
contratempos, todo mundo sentiu imediatamente que a história estava acontecendo
ali. Por um momento, Woodstock foi a profecia de uma nova era, ainda mais cheia
de festivais no rock. Ninguém imaginava que esse período iria terminar mais
cedo do que o esperado.
Em teoria, o Altamont Speedway Free Festival era a sequência
lógica para Woodstock. Organizado nos arredores de São Francisco, quatro meses
depois, apresentava uma escalação de bandas espetacular: Rolling Stones,
Grateful Dead, CSN&Y, Santana, The Flying Burrito Brothers e Jeff erson
Airplane. Por sugestão do pessoal desta última, os Hells Angels foram
contratados para fazer a segurança (“A culpa foi nossa, em parte”, Grace Slick
reconhece) e a coisa logo ficou violenta. Marty Balin, companheiro de Grace no
Jeff erson Airplane, perdeu a consciência por alguns momentos quando levou um
soco depois de mandar um Hells Angel que estava ameaçando a plateia ir se
foder; Chris Hillman, do Byrds, carregando o baixo, quase foi impedido de subir
ao palco por outro Hells Angel. “Os Hells Angels iam abrindo caminho no meio do
público como se fossem um bando de vikings”, conta Hillman. “Dava para ver que
algo iria acontecer.”
Quando o helicóptero carregando o Jefferson Airplane
levantou voo de Altamont Speedway, Paul Kantner voltou-se para Grace. “Ele
disse: ‘Caramba, parece que alguém foi empurrado ou esfaqueado lá embaixo’”,
ela recorda. “E ele tinha razão.” Um rapaz negro de 18 anos chamado Meredith
Hunter tinha corrido na direção do palco segurando uma arma e foi derrubado e
esfaqueado por pelo menos um Hells Angel. Mais tarde, Alan Passaro, acusado
pelo assassinato, acabou absolvido alegando legítima defesa.
Apavoradas com a ideia de outro evento como esse,
comunidades locais passaram a fazer todo o possível para acabar com os
festivais, algumas vezes com sucesso. A cidade de Middlefield, no estado de
Connecticut, resolveu, em cima da hora, que não queria abrigar o Powder Ridge
Rock Festival, e quase todos os principais nomes do evento – Janis Joplin, The
Allman Brothers Band e outros – nem apareceram. Michael Lang, por exemplo, só
foi organizar outro festival em 1994, o Woodstock II.
Apesar de os festivais em larga escala estarem em baixa na
época, a tendência não deteve dois promotores, Jim Koplik e Shelly Finkel, que
planejaram um dia de shows na pista de corrida automobilística Watkins Glen
Grand Prix, no norte do estado de Nova York, no verão de 1973. De acordo com
Koplik, o festival deu lucro imediatamente ao vender todos os 200 mil
ingressos, graças ao line-up com The Band, Grateful Dead e Allman Brothers. Uma
sala no backstage recebeu o estoque do que Koplik descreve como “uma
minimontanha” de cocaína: “As bandas ficaram sabendo da droga e invadiram a
sala – os Allman principalmente, porque isso significava que eles teriam mais
para si”.
Sem querer, Watkins Glen acabou se transformando em um
festival de dois dias quando fãs apareceram um dia antes para assistir às
passagens de som. Então, no dia certo dos shows, o impensável aconteceu: muito
mais gente chegou, totalizando 600 mil pessoas. “Achamos que a pior coisa seria
uma situação de baderna”, diz Koplik, “então decidimos deixar todo mundo entrar
[de graça].” De repente, Glen ficou maior do que Woodstock, com quase
200 mil pessoas a mais.
Apesar dos banheiros lotadíssimos e outros problemas, foi
uma surpresa os shows terem ocorrido sem grandes transtornos. O evento terminou
com uma rara jam com os integrantes das três bandas. Mas, para Robbie Robertson
– e muitos outros do ramo –, Watkins Glen foi o último suspiro. A apresentação
da The Band foi interrompida temporariamente por uma chuva torrencial. “A gente
olhava para toda aquela gente empapada de lama, e parecia o purgatório”, diz
Robertson. Quando Koplik e Shelly tentaram organizar uma nova edição no ano
seguinte, a cidade de Watkins Glen recusou.
Os festivais iriam, mais tarde, se transformar em tradição na Europa, mas quase
uma década se passou antes que mais uma iniciativa de peso fosse tomada nos
Estados Unidos: os US Festivals, financiados por Steve Wozniak em 1982 e 1983.
Wozniak perdeu o total de US$ 24 milhões. Os festivais de rock só seriam
retomados de verdade com o Coachella, em 1999, seguido pelo Bonnaroo, três anos
depois, e o Lollapalooza, que foi criado em 1991, mas só foi
reconfigurado, após anos de hiato, em 2005.
O final da primeira era de festivais de rock, quase sempre
gloriosos, aconteceu em Watkins Glen. Seis anos antes, na Fantasy Fair, dois
paraquedistas desceram enquanto o The 5th Dimension cantava o sucesso pop “Up,
Up and Away”. Em Watkins Glen, um paraquedista que não tinha ligação com a
organização do festival saltou de um avião durante a apresentação da The Band e
acendeu sinalizadores – que fizeram com que ele e as roupas dele pegassem
fogo no ar. O corpo do homem foi encontrado perto dos limites do terreno.
Os sobreviventes da primeira era dos festivais olham para
trás, maravilhados e cheios de lamentos. “Quando a gente é jovem, pensa: ‘Isto
é só o começo, vai ficar ainda mais maravilhoso’”, diz Grace Slick, ex-Jefferson
Airplane. “Bom, nem tanto.”
O Começo do Fim
O sucesso do Woodstock ajudou na derrocada dos
festivais
Apesar de Altamont geralmente ser culpado pelo fim dos
festivais de rock, o sucesso da marca Woodstock – com um filme que arrecadou
US$ 50 milhões nas bilheterias e um álbum triplo que virou best-seller – merece
responsabilidade parcial. Em busca de um novo Woodstock, os promotores
enlouqueceram com os festivais durante toda a década de 1970. Mas apesar de
Woodstock ter dado sorte, mesmo com pessoas sem ingresso e com o tempo chuvoso,
os sucessores do evento não foram tão afortunados. Em 1970, fãs irados
invadiram o Atlanta Pop Festival, o New York Pop Festival e o Strawberry Fields
Festival, nos arredores de Toronto, Canadá, causando prejuízo de US$ 1 milhão
aos promotores, quando mais de 90 mil fãs exigiram entrar de graça no festival.
No mesmo ano, o Isle of Wight, na Inglaterra, também foi maculado por invasores
e fogueiras. Os festivais resistiriam por mais algum tempo, mas o fim dessa era
chegou em 1973, com a realização do festival de Watkins Glen.
Originalmente publicado na ROLLINGSTONE.UOL.COM.BR