|
Doutor Sócrates |
A Democracia Corintiana revolucionou a estrutura reacionária e paternalista do futebol brasileiro. Era o prelúdio de uma utopia que até os até os dias atuais o Brasil não chegou a conhecer.
O ano era 1982. A MPB vivia de metáforas e quase não atingia
a juventude. Seu discurso era destinado para um determinado segmento da
sociedade, mais intelectualizado e com maiores condições de acesso à
informação. Havia poucas bandas de rock. Chico Buarque, Caetano Veloso, Tom Zé,
Gilberto Gil, Elis Regina; entoavam as vitrolas pelo Brasil.
Neste período o Brasil começava a se preocupar com a
inflação, que devastaria a economia, durante o governo de José Sarney. Dentro
das quatro linhas, a fantástica seleção de 1982 havia perdido para a Itália, em
uma verdadeira tragédia, dessas que dificilmente será explicada e compreendida.
Por sua vez, o Corinthians vinha de um mandato praticamente ditatorial. Por
anos um único presidente ditou as regras no clube. Entretanto, um grupo
politizado de jogadores começou a exercer seus direitos de liberdade e
democracia. Todos no clube votavam e exerciam influência sobre o futebol
corintiano. Do treinador ao centroavante. Do roupeiro ao servente. Todos eram
iguais. Estava nascendo aí, a maior utopia do futebol brasileiro e da sociedade
brasileira: a Democracia Corintiana.
A DEMOCRACIA CORINTIANA
Segundo jornalista Juca Kfouri, o futebol brasileiro é ‘corrupto,
corruptor e reacionário’. Aqui, os jogadores são alienáveis, tornam-se escravos
do dinheiro e viram pop-stars. Sem consciência política alguma, os dirigentes,
a mídia e os empresários, fazem deles verdadeiras mercadorias, cujo lucro para
todos é altíssimo. Diante desta áurea toda, a política vira segundo plano aos
jogadores.
Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira não
era nome de jogador de futebol. Nem porte físico ele tinha. Fumante, apreciador
de uma cerveja, comunista, médico e politizado; Sócrates preferia o caderno de
política ao de esportes. Era filiado ao PT – recém fundado -, e não gostava de
treinos nem de concentração.
Suas principais contribuições para o futebol brasileiro não
foram seus geniais passes de calcanhar. Sócrates brilhou fora de campo. E quis
o destino assim. Sócrates fez jus ao nome. Tornou-se pensador do futebol
brasileiro, ao liderar a Democracia Corintiana, que mudaria para sempre os
rumos do alvinegro e dos jogadores envolvidos.
A Democracia foi uma espécie de autogestão futebolística que
teve como resultado os títulos paulistas de 1982 e 1983. Depois de forte
pressão política exercida pelos atletas – que culminou na queda do presidente
Vicente Matheus, folclórico “ditador” corintiano –, jogadores, comissão técnica
e diretoria passaram a decidir, no voto, tudo o que fosse de interesse para o
clube: contratações, demissões, escalação da equipe, data e local de
concentração e outras coisas que, antes, cabiam somente aos cartolas. Tudo era resolvido
no voto. E os votos tinham o mesmo peso: do goleiro reserva ao presidente do
clube. Era mais ou menos como se os operários de uma multinacional começassem a
opinar e a decidir sobre os rumos da empresa.
Para o sociólogo Emir Sader, a Democracia Corintiana foi o
prelúdio de uma experiência que até hoje o Brasil não exerceu plenamente. “Essa
experiência aconteceu surpreendentemente e prematuramente no Corinthians, o
time de futebol mais popular do Brasil. Quando ninguém no país podia votar, os
jogadores daquele grupo conquistaram o direito de decidir sobre seus rumos”.
Nesse período o Corinthians passou a ser o primeiro clube
brasileiro a usar a camisa com fins publicitários. O publicitário Washington
Olivetto, idealizador do termo ‘Democracia Corintiana’, sugeriu que ao invés do
time usar logotipos de empresas, o Corinthians usasse mensagens de cunho
político, como: “Democracia Já”, “Quero votar para Presidente” e outras que
causaram certo impacto na estrutura militarista – que governava o país -, e
paternalista – que comandava o esporte, sobretudo, o futebol. No auge do
movimento, o brigadeiro Jerônimo Bastos, presidente do Conselho Nacional de
Desportos (CND), chamou o presidente do clube e avisou: “Vocês não podem mais
usar esse espaço para fins políticos; caso continuem, vamos engrossar o caldo,
vamos intervir no clube”.
Em 1983, Zé Maria chegou ao posto de treinador da equipe,
através do voto dos jogadores e de todos os funcionários do clube. Após o
episódio, o Jornal da Tarde, estampou a seguinte manchete: “Os jogadores chegam
ao poder”.
No entanto, a convivência entre os jogadores e a imprensa
não foi das melhores, como lembrou Sócrates, posteriormente: “Durante a
Democracia Corintiana, existiu um processo ideológico por parte dos veículos de
comunicação mais conservadores a fim de caracterizar ou rotular nosso movimento
como um sistema frágil perante a opinião pública. Alguns sentiam a necessidade
de fazer isso, até porque a Democracia Corintiana passou a ter um peso na
história do país, no processo de democratização pelo qual passava o Brasil”.
A Democracia começou a se dilacerar quando Sócrates deixa o
Corinthians para jogar na Fiorentina, na Itália. Sua ida não foi causada por
realizações financeiras. Sócrates havia prometido que se a Emenda Dante de
Oliveira fosse aprovada ele iria embora do Brasil.
Em 1984, a Emenda foi reprovada. O povo brasileiro seguiu
sem votar para presidente, e o Doutor deixa o Brasil rumo a Itália. Sem sua
maior liderança, a democracia fica enfraquecida. A venda de Casagrande ao São
Paulo, representa o segundo grande baque. E, infelizmente para o Corinthians e
para o futebol, Roberto Pasqua, ligado à Vicente Matheus, derrota Adilson
Monteiro Alves no pleito de 1º de abril de 1985 por uma diferença ínfima de
votos, assumindo a direção de futebol do clube sob denúncias de fraude e compra
de votos.