Abri os olhos. Fui correndo pra
geladeira. Caí matando numa cerveja gelada. Puta ressaca. Boca seca. Cabeça
explodindo. Dei o primeiro gole. E, em seguida, veio um arroto formidável de
barítono bêbado que me evocou o destilado duvidoso que ingeri na noite anterior.
Janela aberta. Gosto do calor.
Tirei a camiseta. Acendi uma
baga, que estava em excelentes condições de uso. Entre cotovelos, meu
computador. Companheiro de guerra. Pito tranquilamente, queixo caído, náusea
violenta, pensamentos a mil por hora. Puta merda. Lembro-me de alguns fleches
de ontem. Dou uma gargalhada estridente. Num determinado ponto da embriaguez,
saquei a mandioca e dei uma longa mijada. Na marginal, alguns carros passavam.
Certamente, uns pingos de urina respingaram no capô dos automóveis lá embaixo.
Como medida pra amenizar a
ressaca, coloco The Doors. The spy, do Morrison Hotel. I'm a spy in the house of love/ I know the dream, that
you're dreamin' on.
Penso em Lua. Que mulherão. Olhos
de ressaca, sinuosos, poderosos; um verdadeiro fogaréu que lhe rasga a alma ao
meio. Ela conversa contigo fitando-lhe os olhos. É foda. Dá uma vontade
incessante de beijá-la. Na verdade, é a única coisa que lhe passa à cabeça.
Pelo menos na minha.
“Je vais et je viens/ entre tes reins.”
Lua tem aproximadamente um metro
e sessenta e cinco de puro pecado. Corpo esculpido a dedo. Pele dourada
realçada pelo sol carioca. Lua carrega um quê pecaminoso e sublime. Ela sabe de
seu poder. E não a faz a mínima questão de escondê-lo. Vive a vida a rir, a
amar, a aproveitar. Quando vê alguma injustiça, comporta-se como se fosse
apunhalada pelas costas. Sinto-me seguro em sua companhia. Procuro saber o que
pensa, o que sente, o que gosta de fazer, o que não gosta de fazer. Lua tem uma
alma loucamente livre.
Com o tempo, a gente descobriu
algumas diferenças que devem ser consideradas - principalmente relacionada à
música. Ela, por exemplo, adora Beatles. Eu prefiro Doors. Mas isso não impede
que tenhamos um diálogo interessante. Lua aproxima-se da ideia de perfeição.
Ela lembra-me de uma frase de Truffaut – o cara que filmara L'Homme qui aimait les femmes. “O andar feminino
equilibra o mundo”, diz o diretor, através do protagonista, Bertrand Morane.
Com Lua é um pouco diferente. Não é o seu andar que equilibra o mundo. É o seu
olhar. Pensando bem, seu andar também contribui para harmonia do planeta. Eles
guardam uma magia calorosa e misteriosa. Sempre fico retraído ao vê-los. As
palavras somem de minha boca, e tudo o que consigo fazer é olhá-la e venerá-la
e contemplá-la. Se eu pudesse passar a minha vida toda a mirá-los, eu seria o
cara mais feliz do universo. Os versos de Vinícius de Moraes passariam a fazer
sentido. Talvez Vinícius tivesse escrito poemas melhores, se os tivesse visto.
Eu os vi, mas não consegui escrever nenhum poema decente até agora.
Corriqueiramente, ela me mostra
seus poemas. Sim, Lua escreve. E incrivelmente bem. Os textos, sobretudo as
poesias, carregam um lirismo amável e poderoso. Tenho vergonha de mostrar-lhe o
que escrevo. Meus textos são repletos de escatológicas divagações existenciais.
Uma grande merda. Só farra, deboche e putaria. Os textos de Lua, não. São
diferentes. Ao lê-los, sinto como se eu tivesse entrando aos poucos em sua
intimidade. Quando findo a leitura, faço alguma observação aqui e ali. Todas
desnecessárias. E, às vezes, teço alguma crítica mordaz e me arrependo.
Escrever é foda.
“Aprendi muitas coisas contigo”,
me disse ela.
“Sério?”, falei, surpreso. “O
quê, por exemplo?”
Meu coração dava inúmeros pinotes
em meu peito.
“Você me ensina várias coisas, e
não só sobre poetas mortos.”
“Poesia é o combustível da vida.”
Lua deu uma gostosa risada, e
continuou:
“Concordo contigo em uma coisa”,
disse ela.
“E em que é?”, perguntei.
“Doors é uma boa trilha sonora
pro sexo”, ruminou, com seu olhar sensual, sublime e sedutor.
“Hahahahaha. O melhor disco é L.A
Woman”, conclui.
Criatura encantadora, a Lua.
Terminei a ponta.
Peguei Viagem ao fim da noite e fui pra cama. Comecei a ler, e dormi.
Acordei com o barulho do telefone. Levantei-me, entre resmungos e xingos, pra
atender.
“Alô”, falei.
“Opa, bicho. Como vai?”, perguntou Zé.
“Ressaquiado”, informei.
“Não anima de beber uma hoje?”
“Nem fudendo”, eu digo, colocando
o telefone no gancho.
Camarada bêbado.
Só eu e uns três caras em todo o
planeta devem usar um telefone fixo. Até tenho os aplicativos de comunicação.
Mas evito usá-los. Prefiro me comunicar olho-a-olho, sobretudo com as mulheres.
Atualmente, cê chega em casa de madrugada, bêbado, e o celular fica apitando. É
impossível dormir. Um sentimento de indignação e inconformidade me toma. Um
aparelho eletrônico falando comigo. Absurdo!
Voltei a dormir.
Entreguei-me ao sono como uma
moça se entrega ao amante. Novamente, fui acordado. Ao abrir a porta, com
palavrões à mente, deparei-me com Larissa. Antes que eu jorrasse algum
comentário jocoso, inoportuno e idiota, ela perguntou se podia entrar. Sem
possibilidade de recusa, aceitei.
“Tá tudo bem contigo?”, pergunta
ela.
“Mais ou menos”, eu digo.
“Por quê?”
“Bebedeira homérica ontem”,
murmuro, com a voz embargada.
Larissa acomodou-se em meu sofá.
Fui até a cozinha. Como eu não havia oferecido nada pra beber, retornei à sala
e perguntei:
“Quer beber algo?”
“Sim”, disse ela.
“Tenho um vinho. Pode ser?”
“Sem dúvida. “
Peguei um copo espetacularmente
deselegante de requeijão. Era o único que estava limpo. Enchi de vinho.
Fui até meu quarto. Peguei um
baseado.
“Eu assisti um filmaço”, conta Larissa. “É um clássico do Godard, Jule et Jim.”
“Pode crer. Tô ligado. Do caralho
mesmo, Lari”, falei.
“É lindo. Os dois amigos vivem um
triângulo amoroso. Eles se apaixonam pela mesma mulher.”
Acendi o baseado. Dei a primeira
bola e quase morri de tossir. Bagulho bom, pensei.
“Larissa, tenho uma curiosidade:
como tá a tua situação com o Zé?”
“Cara, o Zé é foda. Ele sempre
chega lá em casa de madrugada, inebriado de cerveja, maconha e arte. Aí, toma
um banho e a gente fode até alguém cair no sono. Pela manhã, um love rápido e
“me liga e que eu te ligo. Pode ser?”, relata.
O baseado acabou. Eu estava
fumado e meio bêbado. Larissa falava sem parar sobre música e cinema. Eu a
escutava, desatento.
Indaguei:
“Cê tá com fome, Lari?”
“Sim. Esse baseado laricou.”
Fui pra cozinha. Abri a
geladeira. Porra nenhuma. Só salada e bife. Vou fazer uma saladona, um bifão e
já era.
Coloquei a mão na massa.
É impressionante como uma mulher
admira os dotes culinários de um cara.
Ontem, na calada da noite,
Larissa me aparece aqui. Eu estava no meio daquela soneca pós-bebedeira.
Comemos uns bifes, queimamos unzinho e bebemos um vinho tinto. Larissa me
contou sobre sua primeira trepada. Geralmente, primeira vez de mulher é muito
mais interessante que a de homem. Elas não contam sobre suas aventuras com
prostituas ou empregadas. Nada contra essas mulheres. Inclusive, essas damas
deveriam desfilar sobre a cavalaria da Polícia Militar no centro das principais
cidades brasileiras. Bem, as histórias que são garganteadas por aí não passam
do convencional. Por isso minha indignação.
Larissa se empolga. Fala com
grandes gestos. Zé não estava por perto pra monopolizar a conversa. Ela se
mostra uma grande contadora de causos. Fica menos elegante e mais safada. Diz:
“A história toda começou quando
eu tinha uns quinze, dezesseis anos e conheci Zeca numa festinha da escola. Ele
não tinha nem um atributo. Era magro, feio e quebrado. O cara não tinha grana
pra comermos um sanduba na esquina. Mas Zeca tinha lábia. Sabia as palavras
como poucos. Tinha uma enciclopédia de literatura dentro da cabeça. Dizia que
já tinha lido Machado de Assis, José de Alencar e Lima Barreto...”
“Porra”, brado. “O sujeito era
responsa.”
“Responsa? Ouça só, Beck: A gente
ia pra escola todos os dias. Eu contava sobre minha vida. Ele falava sobre a
dele. Fumava uns três, quatro cigarro no caminho do colégio. Aí, a gente se
encontrava no intervalo. Tínhamos apenas quinze minutos pra conversarmos. E
dava tempo. Ele falava sobre música. Ah, como eu adorava vê-lo discorrer sobre
as principais bandas de rock...”
Larissa enche o copo. Acendo um
cigarro, e comento:
“Tô começando a gostar desse tal
de Zeca.”
“Um dia fomos prum show, acho que do
Capital Inicial ou Velhas Virgens, não me lembro bem. A gente nem bebia. Éramos
bem inocentes. Aí, uma hora resolvi ir ao banheiro. Encontrei Zeca dando o
maior amasso na minha melhor amiga na época, a Caroline.
“Que filha duma puta esse cara,
Lari”, redargui, apagando o cigarro no cinzeiro transbordando bagas.
“Escuta só... Então, saí de
perto. Fui curtir o show. De repente, eles voltaram. Eu estava, pra te dizer a
verdade, com um puta tesão no Zeca.”
“Sei como é”, falo. “Eu também
morro de apreço pelos excluídos, pelos feios.”
“Cê é mesmo um palhaço, Beck”,
disse Larissa, sorrindo. “A gente foi embora. Não rolou nada. Aí, na
segunda-feira fomos normalmente pra aula. Quando ele falava qualquer coisa, eu
dizia algo pra não deixá-lo com cara de paisagem. À tarde, ele foi à minha
casa. E entregou um cd com algumas músicas, músicas que eram as preferidas
dele. Todo mundo no colégio ouvia rap. Alguns curtiam MPB. Puta caretice, saca?
O pessoal só curtia quem falasse dos problemas do Brasil e essa merda toda. Era
uma coisa típica de adolescentes revoltados. Sinceramente, Beck, curti pra
caralho a lista de músicas do Zeca... Before
you slip into unconsciousness... lembra?
“Porra, lógico”, exclamo. “É
Doors, The Crystal Ship, do primeiro disco. Discaço, por sinal.”
“Sim”, fala Larissa.
“E o que rolou?”
“Eu fui pro meu quarto. Liguei o
som e pus o cd pra tocar. A primeira música era Good Times, bad times, do
Zeppelin. Puta som pesado da porra. Mas era diferente. Era um som vivo, saca?
Eu nunca tinha ouvido nada parecido. Meus pais curtiam a boa e velha MPB e essa
chatice toda.”
“O Zeca te apresentou pra
modernidade, Lari. Era como descobrir Tom Jobim e Vinícius de Moraes, nos anos
50”, comento.
“Aí, havia uma música do Doors,
The Spy. Lembra? I'm a spy in the house of love. Eu
ouvi duas, três, quarto vezes. Achei a canção super sensual. E comecei a
acreditar que as coisas eram inocentes entre a gente.”
“Nada é inocente entre um homem e
uma mulher. O cara sempre pensa em comer quem ele conheceu e ela sempre pensa
em foder com quem conheceu”, fraseio.
“Negativo, Beck”, Larissa começa.
“Isso é somente contigo e com o Zé.”
“Porra”, rumino.
“Falocêntricos, isso que cêis
são. Deixa eu continuar aqui. Aí, decidimos sair no final de semana. Coisa
boba, de adolescentes mesmo. Fomos numa pizzaria. Conversamos e conversamos.
Então, na hora de ir embora, eu achava que teria apenas aquele beijo
protocolar. Me enganei. Ele me puxou e me deu um puta beijo! Aí, eu senti seu
pau duro dentro da calça jeans roçando contra mim. Gostei. Peguei e apalpei
aquele troço. Aí, ouvi um leve gemido. Quando olhei pra sua calça, havia uma
marca bem ao meio. O cara tinha gozado. Cê acredita? Aí, eu falei: “Vamo, outro
dia a gente continua.” Ao entrar em casa, fui direto pro quarto. Coloquei The
Spy, e quando Jim começou a cantar I know
the dream, that you're dreamin' on eu me… eu me masturbei. Me masturbei
ouvindo Doors.”
“Que lindo”, elogio.
Larissa terminou de contar a
história de como fora a sua primeira gozada. Ao terminar, ela olhou pro relógio,
e disse:
“São 3h. Preciso ir embora, urgentemente.”
Deu-me um leve beijo na bochecha
e saiu.
Mulheres...
Folheei Ofício de Viver, do Pavese. Sublinhei algumas frases:
“Fazer poesia é como trepar: a
gente nunca sabe se alegria será partilhada.”
Caí na cama.
Angustia matinal. Olhei pela
cortina. O dia estava cinzento. Parecia Curitiba, nessa merda.
Eram 13h. Sempre saio da cama
depois das 12h. É o segredo pra minha bem sucedida existência, pondero. Pra
minha e a dos gatos. Os felinos passam a maior parte do dia dormindo. Não tem
preocupação. Por isso são bonitos.
Fritei alguns bifes. Fiz uma
salada de alface e tomate. E enchi meu copo de rum. Era um rum vagabundo, de 15
paus, que desceu arranhando a garganta.
Com a barriga cheia, peguei
alguns poemas do Chacal. Dei uma foleada. Grifei alguns, caso eu queira ler
depois. Veio-me a imagem de Lua em minha cabeça:
“Seu olhar nunca é
De via lata carente
Nem é feito de ameaça
Pastor domingo na praça”
Vodca na geladeira. Maços de
Marlboro espalhados pela mesa. Retratos de Jim Morrison e John Lennon
pendurados na parede. Larissa me chamou pra beber uma, de leve, em seu
apartamento.
“Imagina um bofe vivendo aqui?
Ter de dar satisfação e essas merdas. Dividir comida. Transar com a mesma pica
todos os dias. Não, não, não”, discorre a anfitriã.
Bofe. Recuso-me a ser denominado
como tal. Mais pela fonética do que pelo significado, que, aliás, não encontrei
até hoje. Larissa, como toda boa esquerdista, tem suas gírias. Ela chama todos
de bofe, de Keith Richards a Paulo Leminski. Seja lá como for um bofe,
considero-me delicado e sensível demais pra ser chamado de um troço desses. Quando
soube do meu descontentamento com o vocábulo, Larissa deu uma de suas risadas
diabólicas, que fazem a gente se mexer um pouco na cadeira e perder a linha de
raciocínio.
Se tiver luz acesa, entre para um
papo no apartamento de Larissa. Geralmente, a galera que está presente é um
bando de intelectuais reclamando da vida, do mundo, das pessoas, da música, da
literatura – mesmo sem dominar os velhões da prosa contemporânea -, do cinema.
Eles só falam de anarquismo, comunismo, revolução, revolta. Às vezes rola um
chororô também. E se não há motivo algum, eles se doem sem um motivo concreto.
E tudo embalado ao som de jazz. Ou Tim Maia – os discos do começo da carreira
-, ou Tom Jobim, ou Roberto Carlos. De vez enquanto, pinta até os blues carioca
de Ângela Rô Rô.
Em certa altura da embriaguez e
da conversa, Larissa disse que estava hospedando uma poetiza carioca. Uma poetiza
carioca? Sério? Barítono de Jim Morrison ecoa em minha cabeça.
“Porra, poetiza carioca dormindo
às três da madrugada, quase nada, como cantou a Gal Costa?, sussurro, alto o
suficiente pras minhas palavras encontrarem o ouvido da poetiza carioca.
“Baixou o Torquato no camarada”,
diz Zé.
O papo abaixa o volume.
Aparentemente, havíamos esquecidos da tal poeta carioca que, segundo Larissa,
era jornalista e tinha escritos alguns livros em prosa e verso. Desejo que ela
me ouça, que me ame e que me ache genial.
Naturalmente, começo a ficar
bobo. A vodca e o fumo fazem efeito. Fico verborrágico, poético – mesmo sem
conseguir soar brilhantemente lírico. Completamente ridículo, atesto. Zé me
lança alguns olhares jocosos. Foda-se, o Zé. O cara é acostumado a falar até pelos
cotovelos no bar.
Ouvimos um barulho que vinha do
quarto de Larissa. Era a poetiza que se levantou. Ficamos em silêncio. Então,
ela apareceu. Larissa disse:
“Te acordamos?”
“Não. Só quero ir ao banheiro”,
diz.
Continuamos a conversa.
A poetiza passou por nós como se
nem desse atenção.
“Vou dormir, gente”, avisa a
aristocrata dos versos. “Amanhã a gente se fala. Tô morta de sono.”
Zé e eu nos olhamos boquiabertos.
“Como é o nome dela?”, pergunto.
“Lua”, responde Larissa.
Que criatura estonteante.
Acordo com um martelo dentro de
meu cérebro. O dia força a passagem pelas frestas da cortina. Rangido de
talheres. Louça sendo lavada. Vozes estridentes. Burocratas em seus ternos.
Pessoas conversando sobre suas vidas, seus compromissos. Caralho, hoje vai ser
difícil sair da cama.
Vou ao banheiro. Jogo uma água na
cara. Melhorou, um pouco. Acendi um cigarro, ao sentar no sofá.
Porra, a Lua.
Eu tinha de vê-la novamente.
Sentei em frente ao computador.
Redigi uma crônica sobre Lua. Mandei pro jornal. Crônicas nascem da percepção
do escritor. O cara tem de estar atento às coisas que ocorrem ao seu redor.
Depois, é só sentar e o resto o teclado faz.
Um dia desses, eu estava contando
pro Zé minha breve carreira de poeta. Estávamos no bar. Ele também escrevera
poemas.
“Bicho, sinto que a tua escrita é
um pouco aleatória”, me disse ele.
Pra isso servem os amigos, pra
lhe apoiar nos momentos de fraqueza, pra lhe tirar da fossa.
“Cê tem jeito pra crônica. Eu
queria ir pra crônica, mas acabei perdendo muito tempo com a academia. Aliás,
ela não me deu nada, do ponto de vista erótico”, desabafou.
“Acho muito difícil alguém sentir
tesão em você falando sobre os problemas sócio-políticos do terceiro mundo”,
falei.
“Justamente, cara. Olhe pra mim.
Falo pra caralho. Escrevi algumas teses. Tese é uma merda. Como diz o Chico,
personagem de Tanto Faz, do Reinaldo Moraes: “Tese é a antítese do tesão.”
Dificilmente uma mulher vai sentir tesão em saber que eu defendi uma tese sobre
o neoliberalismo na vida dos imigrantes da Europa, após a saída do Reino Unido
da União Europeia.”
Meneei a cabeça, concordando.
“Zé”, comecei. “Quando eu
tinha dezesseis anos, eu andava escrevendo poemas. Tinha uns dois cadernos,
cheios de escritos. Conheci uma moça, a Marina. A gente começou a ficar e tal.
E eu escrevendo meus poemas...”
“Nessa época, cê comia alguém?”
“Não, cara. O máximo que rolava
era um boquete de alguma puta. Eu tinha dezessete anos. Era 2012. Taí, Zé, o
que cê fazia em 2012?“
“Tava começando a ganhar uma
grana como fotógrafo. E o Corinthians havia ganhado a Libertadores e o Mundial.”
“Pois é. Aí, a Marina me traiu
com outro filha da puta do colégio que estudávamos. O cara tinha uma pinta de
viado, sabe?”
“Sei.”
“Deve ser por que ele tinha
condições financeiras, né”.
“Provavelmente. Pense, Beck: o
pai do cara dava tudo pra ele, incluindo um carro, aos dezessete anos! E você
pobre, feio, corintiano e bêbado, que rabiscava uns poemas de amor no bar. É
foda, bicho.”
Companheiro pra todas as horas, o
Zé.
“Eu tava no Parada, boteco que
funcionava no centro, perto da UEPG, colocando minhas lamúrias na ponta do
papel, quando vi Marina entrar. Fiquei sem reação.”
Zé seguia concentrado na
leitura de Diário de um jornalista bêbado.
Nem estava prestando atenção no que eu falava. Desgraçado.
Mostrei-lhe meus poemas há uns
dois anos. A gente estava bebendo e fumando um du-bão quando dei-lhe meu
caderno. Zé leu alguns versos, e fraseou:
“Vai pra crônica, meu. Teu
negócio não é poema. Já saquei essa tua ironia machadiana, esse teu deboche
rodrigueano. Lembre-se: cê tem que ir pra crônica.”
No som, Monk´s dream, do pianista Thelonious Monk, tocava pela milésima
vez.
Abri os olhos. Primeira
constatação do dia: eu existo, eu e as paredes. Elas me olham. Eu as olho. A
gente tem uma invejável cumplicidade. Quando me sento em frente ao computador,
pra escrever uma de minhas crônicas malucas, tenho-as como companheiras. Thomas
Mann também as tinha. E Proust, Machado e todos os seus amiguinhos.
Tenho medo. Medo de chegar aos 50 sem mulher, sem amigos, sem dinheiro. Medo de enlouquecer, como Nietzsche. Estou com a cara mergulhada no ócio. Leio, escrevo, coço o saco e dou uma trepada. Vivo a vida de escritor, cujo maior trabalho fora um ensaio que falava sobre dinheiro. Intitulado de Dinheiro é uma merda, o texto ganhara a primeira página de um jornal. Fora uma pancada no puritanismo. Depois, eles mandaram-me um e-mail dizendo que minhas crônicas, com temática "bruta e linguagem chula", não seriam mais publicadas. Continuei a escrever dando bola e enxugando rum barato. E eles pararam de me publicar.
Tá foda. Não consigo colocar uma
ideia no papel. São mil ideias em mente, deve ser por isso. Daí a coisa fica
rondando minha psique. Eu deveria fazer como João Cabral de Melo, e encarar a
vida sóbrio. Mas é foda. Minha ansiedade alivia quando enxugo uma garrafa de
Nattu Nobiles e pito unzinho.
Olho pra garrafa de rum em minha
frente. Penso em ir à cozinha e pegar um copo. Talvez eu consiga colocar a
porra de alguma palavra no papel, sóbrio. É só sentar e escrever. Mais nada.
Beck, cê só precisa pôr essa tua bunda na cadeira e escrever.
Minha crise alcoólica durou
apenas alguns segundos. Como não havia motivos pra não beber, fui até a
garrafa. Abri e dei um longo trago. Bolei um finório, fumei e quando estava
suficientemente bêbado e chapado, sentei-me em frente ao computador e redigi
uma carta lírica e desinibida pra Lua.
Essa solidão vai acabar me
matando. Após dar um trago e fumar esse baseado, sinto meu coração disparar.
Particularmente, prefiro quando ele faz seu trabalho sossegado. Tenho
quase certeza de que vou acabar cardíaco, como meu avô. Ele nunca fumou essa
merda de maconha, que parece mais ter um monte de esterco de vaca, junto desse
rum vagabundo, de 15 paus.
Começo a concordar com Pascal. O
homem só vai ter jeito quando souber controlar o seu quarto.
Agora destilo minhas loucuras. À
noite, acharei algum bar pra beber com Zé. Ou ele aparecerá aqui em casa de
madrugada com doses extravagantes de vinho e fumo na cabeça. Caso isso ocorra,
terei de tocá-lo daqui. Ninguém é obrigado a aguentar um bêbado inconveniente.
Zé é gente boa. Amigão. Contudo, quando enxuga uma garrafa de Montilla,
torna-se o cara mais estranho do planeta. Bate na mesa. Crítica a desigualdade
social. Discorre e ironiza a existência de Deus. Pede a prisão e a renúncia de Temer. Zé tem estilo. E, como Bukowski,
sabe que o estilo “é a resposta pra tudo”.
seu jeito sedutor
seu andar
harmônico
a forma com que segura o cigarro
a forma com que fala com as
pessoas
Lua, cê é incrível
Encontrei-me com ela algumas
vezes. Nelson Rodrigues tinha razão: Toda nudez precisa ser castigada. Imagine
Lua andando por aí nua. Os velhinhos cairiam duros no ato. Lua despida fez meu
coração bater freneticamente dentro do meu peito. Somando-se a isso, sua
conversa me deixava preso sobre a mesa do bar. Nem me remexer na cadeira, eu
conseguia. Fumava um cigarro atrás do outro. Se algum
animal não ficar feliz com a companhia de Lua, filosofo, é porque a felicidade definitivamente não existe. Ela discorre sobre sua vida, sobre seu novo livro,
sobre os poemas que está escrevendo. A cada sílaba que sai de sua boca, minha
vontade de beijá-la aumenta. Eventualmente, eu esboço algum galanteio. Ela dá
risadas. Mulheres com personalidade forte me atraem. Elas são donas de si.
Sabem o que querem, e como querem. Diante de uma dama dessas, o cara tem de
controlar seu fluxo de pensamento. Frases feitas, jamais. Chavões, nem pensar.
Lua é loucamente sublime.