domingo, 22 de fevereiro de 2015

Sargento Getúlio


João Ublado Ribeiro nasceu em 23 de janeiro de 1941, na cidade de Itaparica, no interior da Bahia. Formou-se em Direito, mas optou pela carreira jornalística. Seu primeiro emprego fora no Jornal da Bahia, juntamente com o cineasta Glauber Rocha. Colaborou com os principais veículos de comunicação do país, como OGlobo, Estadão e A Tarde. Morreu em 18 de julho de 2014, no Rio de Janeiro.

Em 1971, lançou Sargento Getúlio, considerada pelos críticos a sua obra-prima. Ela foi adaptada ao cinema, em 1983, com Lima Duarte no papel de Sargento Getúlio. João Ubaldo escrevera o roteiro, junto de Flávio Porto e Hermanno Penna – diretor do filme. A obra é tida como um clássico do cinema nacional. 

João Ubaldo, em entrevista, disse que Sargento Getúlio é um romance engajado. “Persegui esta espécie de autobiografia fantasmagórica, mas com maior distância. É, de certa forma, um retorno à minha infância, ao universo de Sergipe, com sua brutalidade, seu primitivismo ao qual dei uma dimensão mais ampla — ética e política”, falou.

No entanto, ele ressaltou que nunca quisera mudar nada na sociedade. O foco de seus escritos sempre fora a cabeça do leitor. João Ubaldo aproveitou-se da força da literatura. E transformou a compreensão de mundo de determinados grupos sociais.

A obra

Sargento Getúlio fora lançado em 1971. O livro dera o prêmio Jabuti – mais importante da língua portuguesa – a João Ubaldo. Sargento Getúlio é considerado um clássico da prosa brasileira, já traduzida para vários idiomas.

Segundo Antônio Candido, crítico literário e professor USP e da UNESP, Sargento Getúlio representa a terceira fase “do atraso da América Latina”. Esta fase seria o super-regionalismo, em que o autor utiliza de técnicas fantásticas para retratar um espaço primitivo, feudal em confronto com a civilização urbana. 

Em um primeiro momento, a obra apresenta-se como um monólogo. Sargento Getúlio Santos Bezerra - oficial de policia – recebe uma incumbência: a de matar um importante adversário político de Paulo Afonso.

No decorrer da obra, o monologo torna-se fluxo de consciência. Getúlio teria de executar o trabalho para aposentar-se. “Depois desse trabalho irei me aposentar-me”, conta Getúlio, em um trecho que exemplifica o fluxo de consciência, utilizado por grandes mestres da literatura, como Marcel Prosut, James Joyce, William Faulker.

Na epígrafe do livro, João Ubaldo descreve que trata-se de uma “história de aretê”. A menção a deusa Areté – deusa grega do compromisso -, é comprovado quando Getúlio fez a opção por seguir uma questão de honra pessoal, não se importando com as consequências de sua escolha.


segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Diálogo conjugal moderno

(Rogério e Renata estavam pelados. Ele segurava o membro masculino à mão. Ela veio à direção dele, e com os lábios degustou o pênis, carinhosa, lânguida, fogosamente. Ele urrava. Gritara até o mundo escutá-lo.)

RENATA – Me come, porra!

ROGÉRIO – Tá bom.

RENATA – Anda logo. Mete na minha bucetinha.

ROGÉRIO – Assim, sem trocarmos nem uma palavrinha?

RENATA – Você acha que eu vim aqui para conversar? Quero sexo!

ROGÉRIO – Não, não. Isso tá errado. Não é assim. Não pode ser assim, entende. Precisa haver uma conexão, uma sintonia. As mulheres são podem ser loucas por sexo. A sociedade não vê com bons olhos.

RENATA – A sociedade? Vocês, machos, sempre nos dominaram. Sempre discutiram sexo, como e aonde queriam. E nos? Sempre ficamos a deriva. No bar, ninguém nos olhava se nós expressássemos o furor sexual.

ROGÉRIO – Nós machistas?

RENATA – Isso mesmo!

ROGÉRIO – Não, não. Temo em lhe dizer, mas você está extremamente equivocada. Sempre as respeitamos. Entendemos que a mulher é o sexo frágil.

RENATA – Sexo frágil? Que porra é essa? Não somos o sexo frágil, coisa nenhuma. Apenas queremos igualdade de gênero. É pedir muito?

(Ele ficara calado. Não dizia nada. Parecia estar aflito. Ela agarrou-lhe o pênis e ordenou que a penetrasse. Nada parecia importar para ela. Ou apenas, estivesse a querer algo que os igualasse como seres humanos. Aquela barreira de homem e mulher deveria ser deixada de lado, se possível)

ROGÉRIO – Venha aqui!

RENATA – Estou esperando, e faz tempo, querido.

ROGÉRIO – Espere apenas subir o amigão, e verá só o que é bom. Você não gosta de pinto? Então, chupe-o!

RENATA – Não, não farei isso. Está pensando que eu sou o quê, seu merda?

ROGÉRIO – Porra, você não queria foder, sua puta!

(Apenas ouviu-se a mão de Renata encontrar a face de Rogério, que caíra ao chão, bravo. Ela disse-lhe frases pesadas, de efeito. O psicológico do sujeito fora abalado profundamente. Renata queria sexo, mas acima de tudo, buscava algo que desse uma posição confortável. O sexo, segundo ela, não deveria ser jamais utilizado como uma forma de dominação masculina. Ele tinha de ser amoroso, caloroso, apaixonante. Agora usá-lo como uma forma de poder, deixava-a chateada.)

RENATA – Não vou lhe dar. Ponto!

ROGÉRIO - Como assim? Tá pensado que eu sou palhaço, é?

RENATA – Primeiro trate-me bem, com cordialidade. Não queira impor o sexo. Eu também posso lhe ensinar a arte da putaria. Vocês, homens, não sabem tudo. O quê custa reconhecer isso? É pedir demais?

ROGÉRIO – Sei lá. Você é maluca. Pensando bem, não quero nada contigo, não.

RENATA – Talvez seja até bom assim, vai saber.

ROGÉRIO – Talvez...

(Ela passou pela porta do quarto de motel. Deitado à cama, Rogério pôs-se a pensar na vida e, sobretudo, em Renata. Ela havia mexido com ele, de certo modo. Mas nada podia ser feito. Ele no fundo era apenas um machista, que ainda acreditava que os homens detinham a dominância das relações conjugais.)

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Não perguntara seu nome

Fernando era um sujeito culto. Tinha uma bagagem cultural admirável. Discorria sobre os mestres das letras, com facilidade invejável. Falava, por horas, se deixar, de Nietzsche, Kant, Proust.

Eu estava desempregado. Ouvia palavras nada amigáveis de minha esposa. “Beck, você precisa parar de ser vagabundo. Vá arrumar um emprego”, ordenava ela. Eu apenas olhava-a, desanimado com as minhas escolas.

- não entendo um cara como você, inteligente, intelectual, se submeter a isso – dizia ela.

- a isso o quê? – questionei.

- a essa vida de merda, de ser um pobre!

- as pessoas com o tempo tem tendência a se acomodar.

- bela explicação!

- se acomodam com o emprego, com o casamento, com tudo ao seu redor.

- nossa, estou ficando excitada – ironizou.

Levantei-me do sofá e fui pegar uma cerveja. Abri-a, e bebi. A cevada descia pela garganta, gelada, a refrescar as minhas entranhas.

- olha só, abriu mais uma cerveja.

- e qual o problema?

- você não trabalha. Dorme às cinco da manhã. Fica enchendo o saco dos vizinhos com as batidas das teclas.

- porra, dá um tempo, pelo amor de Deus!

O telefone  tocou. Era Fernando chamando-me para sair beber. Sem hesitar, aceitei o convite.
Sempre defendi a ideia de que não se deve recusar uma cordialidade alcoólica. Fernando sabia que eu não tinha grana para nada. Mas mesmo assim ligou-me.

Bebemos. Demos boas risadas, e de novo não escrevi. Há tempos eu queria fazer algo diferente. Algo parecido com uma peça teatral. Queria experimentar o lado da dramatização.

- Beck, teu negócio é conto, crônica, poesia, romance, novela. Essa merda de teatro, não é para você, cara.

- mas não custa nada ver como é.

- não, claro. É uma experiência.

Eu escrevia crônicas para jornais da cidade. Algumas eram repletas de palavrões, o que assustava os leitores. “Isso não é texto que se saía em um jornal”, alertavam os leitores. E eu não dava muita atenção. “Nem sabem escrever”, cogitava no meu exercício introspectivo.

- eu os leio, cara. E os acho do caralho – dizia Fernando.

- mas o povo não curte muito, não.

- eles não sabem escrever.

- são meus leitores.

- é verdade. Foda-se. Escreva o quê a sua mente quer.

- eu faço sempre isso.

- Continue assim.

- não sei se será possível.

- sempre é.

- tenho dúvidas.

- quê dúvidas?

- sei lá.

Enchi mais um copo de cerveja. Acendi um cigarro. Dei algumas tragadas. E observei uma garota atravessar a rua. Ela era bela. Tinha uma ótima nádega. Olhos vivos, cativantes, sedentos, misteriosos. Cabelos ruivos. Rebolava ao andar. Chamava a atenção de todos, naquele bar.

Falei para Fernando que iria ao banheiro. Acho que ele nem viu ela desfilar. E passou em sua frente! Esse é o problema com intelectuais: divagam demais, e nem percebem a beleza da vida. “tudo bem”, respondeu.

Caminhei lentamente na direção dela. Enquanto andava, imaginava como iria abordá-la. Sentei-me ao seu lado, no balcão. “Desce uma bebida para a moça”, disse para o garçom, meu conhecido da boemia. “Vinho, por favor”, respondeu ela. Observei-a e disse-lhe: “Lindos olhos, os seus”. “Obrigado”, redarguiu. Conversamos sobre vários assuntos. Descobri que ela era professora universitária. Notei a felicidade em sua feição, quando lhe contei que era escritor.” Nunca conheci um. Não sei como são”, declarou. "São todos uns merdas. Não tem nem aonde cair mortos”. Assustada, propôs sentarmo-nos à mesa que ficara vazia. Assenti que sim.

Sentamos. A conversa se estendeu. Fernando viu-nos e veio em nossa direção:

- posso me sentar, senhores?

- claro – respondeu ela – adoro conhecer pessoas novas, diferentes.

Fernando começou a falar sobre literatura, e não parou mais.

- esse cara aqui é escritor. Escreve no Diário da Manhã e em outros jornais. – falou Fernando.

- sim, sim. Nós conversamos, no balcão, mas não havia me dito que escrevia para o DM.

- pois é. Acho sem importância – falei, tentando esquivar-me do papo chato de escritor para leitor.

- escreve sobre o quê? – ela quis saber.

- sobre a vida.

- os textos dele são geniais – afirmou Fernando.

- sim, sim. Agora lembrei. Você é o cronista da Opinião Pública!

- isso.

- cê é um gênio!

Encontrei uma fã. Beijei-a e Fernando ficou ali, assistindo-nos.

- você é um gênio – reforçou ela.

Dei-lhe mais um beijo.Nos despedimos e anotei seu telefone.

- gata, né, Fernando.

- sim.


Entrei no carro e lembrei: não perguntara seu nome. 

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Saudações, mundo

Eu não tinha dinheiro para nada. Nos últimos anos, perambulei de emprego a emprego. Até que resolvei mandar tudo à merda. Decidi que deveria escrever algo. E escrevi uma novela. Transformei-a em conto e enviei a um concurso. Não ganhei. Acharam que o meu texto era obsceno.

Todas as noites sentavam-me em frente ao meu computador, e escrevia. Na maioria das vezes, saíam apenas algumas bagunças e desentendimentos silábicos. Lembrei-me de Bukowski, que cansara de ter seus textos recusados pelos editores.

Mudei-me para a casa de Larissa. Ela saía para trabalhar, pela manhã. Eu cuidava do seu cachorro. Não gosto de cachorros. Prefiro gatos. Eles são misteriosos. Adoro-os, por isso. “Beck, fique a vontade. Escreva. Gosto de te ver a escrever”, disse-me Larissa. Mas ultimamente, não conseguia escrever sequer uma frase simples, com sujeito, verbo e predicado. Então, bebia durante toda a madrugada. Acordava meio-dia, com uma ressaca feroz. Vomitava e levava Richards – o cachorro – para dar uma volta no parque.

- Beck, como vai o romance? – perguntou Larissa.

- acho que nunca vou terminá-lo – respondi.

- mas não pode desistir.

- mas com todos aconteceu isso. Hemingway, Faulkner, Miller. Miller demorou anos para publicar a porra de um romance.

- você precisa escrever.

- eu sei.

- então escreva.

- escrever é foda.

Caminhei até a geladeira. Não havia cerveja lá. Falei a Larissa que iria buscar algo para beber. Ela dissera “tudo bem”.

Eu tinha um Fusca 69, velho. Dei partida e o carro morreu. Morávamos ao lado de uma senhora chata. Ela incomodava-se com o meu carro, que sempre cismava em não pegar. Tentei mais uma vez e nada. O filha da puta não queria funcionar. “pega, seu merda”, gritei. A senhora saiu na janela e tardou a olhar-me. Senti vergonha de ser pobre. Pela primeira vez, em anos, cogitei em procurar um emprego. Mas logo desisti da ideia.

Trajando um roupão e com um seio à mostra, a senhora veio até mim. Bateu no capô do carro, e disse:

- se você não tirar essa lata velha daí, vou chamar a polícia.

- estou tentando fazê-lo funcionar.

- tire esse lixo da frente de minha casa, seu vagabundo.

Finalmente pegou. Andei algumas quadras e o Fusca morreu. Após poucas tentativas, consegui pôr ele para andar.

Comprei duas caixas de cerveja e um uísque. Paguei e fui embora. Retornei a casa, e Larissa estava deslumbrante. Toda nua, pronta para trepar: “Venha garanhão. Quero lhe foder”, impôs. Não pude rejeitar. 
Fodi-a, calma, delicada e cuidadosamente.

Acendi um cigarro. O celular tocou. Ela Ângela:

- oi, Beck.

- oi.

- o quê cê anda fazendo?

- trabalhando em um romance.

- legal. E como está?

- emperrado. Escrevi alguns capítulos e nada.

- queria lhe convidar para beber umas. Tudo bem?

- não vai dar.

- por que não?

- porque estou morando com uma garota.

- como assim?

- simples: juntei-me a ela. Cuido do seu cachorro e quando tenho uma explosão criativa, sento-me ao 
computador e escrevo.

- então tá – e desligou.

Ângela era maravilhosa. Ruiva, olhos vivos e questionadores. Corpo sinuoso, símbolo da perdição. Transei com ela algumas vezes. Mas não havia como dar certo. Eu tinha hábitos noturno e boêmio. Jogava sinuca. 
Vivia no bar, bêbado. Quando voltara para a casa, a cheirar álcool, deitava e dormia. Ela, uma verdadeira máquina de sexo, sentia-se lesada.

- Beck, a janta esta na mesa – avisou Larissa.

Sentei. Estava de frente para ela. Rosto com rosto. Boca com boca. Beijei-a.

- muito obrigado pelo calmante, querida – agradeci.

- não há de quê.

- acho que vou escrever algo.

- legal!

Larissa sempre ficava em êxtase quando eu dizia que escreveria algo. Muitas vezes, frustrava-se com o resultado. Assustava-se com o conteúdo dos contos. “É a vida”, dizia a ela. Porém, não adiantava muito. Ela continuava a achar que meus textos eram sujos.

Eu ficava sozinho a partir das nove da noite. Larissa acordava cedo. Eu é que ficava bebendo até de manhã, enchendo o saco dos vizinhos com música e o barulho das teclas. A velha fórmula sujeito/verbo/ predicado estava fazendo sentido, novamente.


Escrevi, escrevi, escrevi por longas horas. Umas cem páginas foram escritas. Era uma novela. Mundo, saudações! Beck está de volta.