quarta-feira, 29 de março de 2017

Poeta andarilho

Poeta de rua desde 2004, Francisco Dourado, 48 anos, é andarilho há 20. Sentado à minha esquerda, ele vestia camisa social azul, calça caqui e botas de roceiro. Francisco saiu da igreja da PUC, na área 2, e veio em minha direção, sorrindo e filosofando sobre a vida. “Quem controla os pensamentos?”, indagou o poeta.

Eu estava a caminho de casa e parei para beber uma água. Na verdade, as circunstâncias me assustam e eu estou puto com elas.

Queria estar inspirado, parar de pensar depravações e ter alguém para segurar minha mão ao atravessar a rua. Tudo bem: sou um fodido. Aceitei isso. Já faz um tempo. Eu preciso ter assunto. Voltar à criatividade e escrever coisas alegres para as pessoas – especialmente às que amo e me amam.     

Direciono um olhar para Francisco. Ao fundo, um cara estava concentradíssimo em seu smartphone. Mais um burguês desgraçado que jamais compreenderá a fome ou a pobreza. Francisco falava, mas apenas eu lhe dava ouvidos. Enquanto ele declamava poemas, passei a observá-lo. Por atrás do seu olhar, havia humanidade e esperança.

Esperto e vivido, o poeta me perguntou por que eu estava calado:

“A vida tá foda”, reclamei.

“Que nada, bicho”, falou. “Foda é ser fodido pela barreira econômica que há entre as pessoas”.

“Verdade”, concordei, meneando a cabeça.

Dei um trago no palheiro, e ele perguntou:

“É mulher?”

“Mais ou menos, bicho”, respondi.

“Não se preocupe: sempre há uma saída.”

De repente ele me contou que um conhecido escreveu sobre sua poesia. O texto foi publicado no site da UNB (Universidade Nacional de Brasília), mas Francisco disse que boa parte da entrevista acabou sendo inventada pelo repórter. Sem condições financeiras para processar o jornalista, ele foi levando dia após dia, como Jack Keroauc ao atravessar os EUA, sem dinheiro, e depois mandou a matéria para um amigo, em Uberlândia, que é doutor em Direito.

“Esses dias acessei o site da UBN, mas não encontrei porra nenhum lá”, afirmou. “Será que meu amigo conseguiu fazer algo?”

Curioso, perguntei:

“Qual era o foco da entrevista?”

“Minha poesia... eu sempre fui poeta marginal, de rua, vagabundo mesmo. Aí o repórter, em determinado trecho da matéria, disse que eu não amava meu irmão”, relatou, tragando o palheiro e ficando em silêncio. “Eu amo meu irmão, cara. Nunca falaria um negócio desses”.

“Foda”, falei.

“Sabe: eu amo as pessoas, mas não tenho necessidade de ficar perto delas. Eu posso ficar de anos um amigo, e ainda assim irei amá-lo”, disse Francisco. “Não sou possessivo”, completou.

Ele é mais um dos milhares que passam longe dos holofotes. Artista de rua e andarilho, Francisco já perambulou em Brasília, Uberlândia e Goiânia, onde faz da rodoviária sua casa. “Às vezes eu chego nos lugares e as pessoas fingem que não me veem”, desabafa.

Minutos depois, o segurança da igreja pediu para ele tirar sua mochila, que estava no chão do templo. O poeta assinalou com o dedo polegar, e disse que dali alguns instantes a tiraria de lá. Apreensivo, o sujeito afirmou que não iria se responsabilizar por nenhum dano que acontecesse. “Minha mochila é barata, toda fodida, porque daí ninguém rouba”, contou, sorrindo. “Andar com mochila nova, de marca, com couro não sei de onde, não dá certo. Já, já te roubam”, aconselhou.

Francisco declamou alguns poemas. Eis trecho de um deles:

Avante, avante
Com sua fé
Constante

Conversamos por aproximadamente 40 minutos. Na verdade, a primeira impressão que tive foi de desconfiança. Ele, acostumado com a vida nas ruas, sabe que eu fiquei receoso. Não importa. Antes de ir embora, dei-lhe um abraço com ternura e agradeci pelas sábias e confortantes palavras.

Desculpe-me Fernando Sabino, mas eu queria que minha crônica fosse assim: pura como Francisco, o poeta andarilho. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário