segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Ela

Abri os olhos. Fui correndo pra geladeira. Caí matando numa cerveja gelada. Puta ressaca. Boca seca. Cabeça explodindo. Dei o primeiro gole. E, em seguida, veio um arroto formidável de barítono bêbado que me evocou o destilado duvidoso que ingeri na noite anterior. Janela aberta. Gosto do calor.

Tirei a camiseta. Acendi uma baga, que estava em excelentes condições de uso. Entre cotovelos, meu computador. Companheiro de guerra. Pito tranquilamente, queixo caído, náusea violenta, pensamentos a mil por hora. Puta merda. Lembro-me de alguns fleches de ontem. Dou uma gargalhada estridente. Num determinado ponto da embriaguez, saquei a mandioca e dei uma longa mijada. Na marginal, alguns carros passavam. Certamente, uns pingos de urina respingaram no capô dos automóveis lá embaixo.

Como medida pra amenizar a ressaca, coloco The Doors. The spy, do Morrison Hotel. I'm a spy in the house of love/ I know the dream, that you're dreamin' on.

Penso em Lua. Que mulherão. Olhos de ressaca, sinuosos, poderosos; um verdadeiro fogaréu que lhe rasga a alma ao meio. Ela conversa contigo fitando-lhe os olhos. É foda. Dá uma vontade incessante de beijá-la. Na verdade, é a única coisa que lhe passa à cabeça. Pelo menos na minha.

“Je vais et je viens/ entre tes reins.”

Lua tem aproximadamente um metro e sessenta e cinco de puro pecado. Corpo esculpido a dedo. Pele dourada realçada pelo sol carioca. Lua carrega um quê pecaminoso e sublime. Ela sabe de seu poder. E não a faz a mínima questão de escondê-lo. Vive a vida a rir, a amar, a aproveitar. Quando vê alguma injustiça, comporta-se como se fosse apunhalada pelas costas. Sinto-me seguro em sua companhia. Procuro saber o que pensa, o que sente, o que gosta de fazer, o que não gosta de fazer. Lua tem uma alma loucamente livre.

Com o tempo, a gente descobriu algumas diferenças que devem ser consideradas - principalmente relacionada à música. Ela, por exemplo, adora Beatles. Eu prefiro Doors. Mas isso não impede que tenhamos um diálogo interessante. Lua aproxima-se da ideia de perfeição. Ela lembra-me de uma frase de Truffaut – o cara que filmara L'Homme qui aimait les femmes. “O andar feminino equilibra o mundo”, diz o diretor, através do protagonista, Bertrand Morane. Com Lua é um pouco diferente. Não é o seu andar que equilibra o mundo. É o seu olhar. Pensando bem, seu andar também contribui para harmonia do planeta. Eles guardam uma magia calorosa e misteriosa. Sempre fico retraído ao vê-los. As palavras somem de minha boca, e tudo o que consigo fazer é olhá-la e venerá-la e contemplá-la. Se eu pudesse passar a minha vida toda a mirá-los, eu seria o cara mais feliz do universo. Os versos de Vinícius de Moraes passariam a fazer sentido. Talvez Vinícius tivesse escrito poemas melhores, se os tivesse visto. Eu os vi, mas não consegui escrever nenhum poema decente até agora.

Corriqueiramente, ela me mostra seus poemas. Sim, Lua escreve. E incrivelmente bem. Os textos, sobretudo as poesias, carregam um lirismo amável e poderoso. Tenho vergonha de mostrar-lhe o que escrevo. Meus textos são repletos de escatológicas divagações existenciais. Uma grande merda. Só farra, deboche e putaria. Os textos de Lua, não. São diferentes. Ao lê-los, sinto como se eu tivesse entrando aos poucos em sua intimidade. Quando findo a leitura, faço alguma observação aqui e ali. Todas desnecessárias. E, às vezes, teço alguma crítica mordaz e me arrependo.

Escrever é foda.

“Aprendi muitas coisas contigo”, me disse ela.

“Sério?”, falei, surpreso. “O quê, por exemplo?”

Meu coração dava inúmeros pinotes em meu peito.

“Você me ensina várias coisas, e não só sobre poetas mortos.”

“Poesia é o combustível da vida.”

Lua deu uma gostosa risada, e continuou:

“Concordo contigo em uma coisa”, disse ela.

“E em que é?”, perguntei.

“Doors é uma boa trilha sonora pro sexo”, ruminou, com seu olhar sensual, sublime e sedutor.

“Hahahahaha. O melhor disco é L.A Woman”, conclui.

Criatura encantadora, a Lua.

Terminei a ponta.

Peguei Viagem ao fim da noite e fui pra cama. Comecei a ler, e dormi. Acordei com o barulho do telefone. Levantei-me, entre resmungos e xingos, pra atender.

“Alô”, falei.

“Opa, bicho. Como vai?”, perguntou Zé.

“Ressaquiado”, informei.

“Não anima de beber uma hoje?”

“Nem fudendo”, eu digo, colocando o telefone no gancho.

Camarada bêbado.

Só eu e uns três caras em todo o planeta devem usar um telefone fixo. Até tenho os aplicativos de comunicação. Mas evito usá-los. Prefiro me comunicar olho-a-olho, sobretudo com as mulheres. Atualmente, cê chega em casa de madrugada, bêbado, e o celular fica apitando. É impossível dormir. Um sentimento de indignação e inconformidade me toma. Um aparelho eletrônico falando comigo. Absurdo!

Voltei a dormir.

Entreguei-me ao sono como uma moça se entrega ao amante. Novamente, fui acordado. Ao abrir a porta, com palavrões à mente, deparei-me com Larissa. Antes que eu jorrasse algum comentário jocoso, inoportuno e idiota, ela perguntou se podia entrar. Sem possibilidade de recusa, aceitei.

“Tá tudo bem contigo?”, pergunta ela.

“Mais ou menos”, eu digo.

“Por quê?”

“Bebedeira homérica ontem”, murmuro, com a voz embargada.

Larissa acomodou-se em meu sofá. Fui até a cozinha. Como eu não havia oferecido nada pra beber, retornei à sala e perguntei:

“Quer beber algo?”

“Sim”, disse ela.

“Tenho um vinho. Pode ser?”

“Sem dúvida. “

Peguei um copo espetacularmente deselegante de requeijão. Era o único que estava limpo. Enchi de vinho.

Fui até meu quarto. Peguei um baseado.

“Eu assisti um filmaço”, conta Larissa. “É um clássico do Godard, Jule et Jim.”

“Pode crer. Tô ligado. Do caralho mesmo, Lari”, falei.

“É lindo. Os dois amigos vivem um triângulo amoroso. Eles se apaixonam pela mesma mulher.”

Acendi o baseado. Dei a primeira bola e quase morri de tossir. Bagulho bom, pensei.

“Larissa, tenho uma curiosidade: como tá a tua situação com o Zé?”

“Cara, o Zé é foda. Ele sempre chega lá em casa de madrugada, inebriado de cerveja, maconha e arte. Aí, toma um banho e a gente fode até alguém cair no sono. Pela manhã, um love rápido e “me liga e que eu te ligo. Pode ser?”, relata.

O baseado acabou. Eu estava fumado e meio bêbado. Larissa falava sem parar sobre música e cinema. Eu a escutava, desatento.

Indaguei:

“Cê tá com fome, Lari?”

“Sim. Esse baseado laricou.”

Fui pra cozinha. Abri a geladeira. Porra nenhuma. Só salada e bife. Vou fazer uma saladona, um bifão e já era.

Coloquei a mão na massa.

É impressionante como uma mulher admira os dotes culinários de um cara.

Ontem, na calada da noite, Larissa me aparece aqui. Eu estava no meio daquela soneca pós-bebedeira. Comemos uns bifes, queimamos unzinho e bebemos um vinho tinto. Larissa me contou sobre sua primeira trepada. Geralmente, primeira vez de mulher é muito mais interessante que a de homem. Elas não contam sobre suas aventuras com prostituas ou empregadas. Nada contra essas mulheres. Inclusive, essas damas deveriam desfilar sobre a cavalaria da Polícia Militar no centro das principais cidades brasileiras. Bem, as histórias que são garganteadas por aí não passam do convencional. Por isso minha indignação.

Larissa se empolga. Fala com grandes gestos. Zé não estava por perto pra monopolizar a conversa. Ela se mostra uma grande contadora de causos. Fica menos elegante e mais safada. Diz:

“A história toda começou quando eu tinha uns quinze, dezesseis anos e conheci Zeca numa festinha da escola. Ele não tinha nem um atributo. Era magro, feio e quebrado. O cara não tinha grana pra comermos um sanduba na esquina. Mas Zeca tinha lábia. Sabia as palavras como poucos. Tinha uma enciclopédia de literatura dentro da cabeça. Dizia que já tinha lido Machado de Assis, José de Alencar e Lima Barreto...”

“Porra”, brado. “O sujeito era responsa.”

“Responsa? Ouça só, Beck: A gente ia pra escola todos os dias. Eu contava sobre minha vida. Ele falava sobre a dele. Fumava uns três, quatro cigarro no caminho do colégio. Aí, a gente se encontrava no intervalo. Tínhamos apenas quinze minutos pra conversarmos. E dava tempo. Ele falava sobre música. Ah, como eu adorava vê-lo discorrer sobre as principais bandas de rock...”

Larissa enche o copo. Acendo um cigarro, e comento:

“Tô começando a gostar desse tal de Zeca.”

“Um dia fomos prum show, acho que do Capital Inicial ou Velhas Virgens, não me lembro bem. A gente nem bebia. Éramos bem inocentes. Aí, uma hora resolvi ir ao banheiro. Encontrei Zeca dando o maior amasso na minha melhor amiga na época, a Caroline.

“Que filha duma puta esse cara, Lari”, redargui, apagando o cigarro no cinzeiro transbordando bagas.

“Escuta só... Então, saí de perto. Fui curtir o show. De repente, eles voltaram. Eu estava, pra te dizer a verdade, com um puta tesão no Zeca.”

“Sei como é”, falo. “Eu também morro de apreço pelos excluídos, pelos feios.”

“Cê é mesmo um palhaço, Beck”, disse Larissa, sorrindo. “A gente foi embora. Não rolou nada. Aí, na segunda-feira fomos normalmente pra aula. Quando ele falava qualquer coisa, eu dizia algo pra não deixá-lo com cara de paisagem. À tarde, ele foi à minha casa. E entregou um cd com algumas músicas, músicas que eram as preferidas dele. Todo mundo no colégio ouvia rap. Alguns curtiam MPB. Puta caretice, saca? O pessoal só curtia quem falasse dos problemas do Brasil e essa merda toda. Era uma coisa típica de adolescentes revoltados. Sinceramente, Beck, curti pra caralho a lista de músicas do Zeca... Before you slip into unconsciousness... lembra?

“Porra, lógico”, exclamo. “É Doors, The Crystal Ship, do primeiro disco. Discaço, por sinal.”

“Sim”, fala Larissa.

“E o que rolou?”

“Eu fui pro meu quarto. Liguei o som e pus o cd pra tocar. A primeira música era Good Times, bad times, do Zeppelin. Puta som pesado da porra. Mas era diferente. Era um som vivo, saca? Eu nunca tinha ouvido nada parecido. Meus pais curtiam a boa e velha MPB e essa chatice toda.”

“O Zeca te apresentou pra modernidade, Lari. Era como descobrir Tom Jobim e Vinícius de Moraes, nos anos 50”, comento.

“Aí, havia uma música do Doors, The Spy. Lembra? I'm a spy in the house of love. Eu ouvi duas, três, quarto vezes. Achei a canção super sensual. E comecei a acreditar que as coisas eram inocentes entre a gente.”

“Nada é inocente entre um homem e uma mulher. O cara sempre pensa em comer quem ele conheceu e ela sempre pensa em foder com quem conheceu”, fraseio.

“Negativo, Beck”, Larissa começa. “Isso é somente contigo e com o Zé.”

“Porra”, rumino.

“Falocêntricos, isso que cêis são. Deixa eu continuar aqui. Aí, decidimos sair no final de semana. Coisa boba, de adolescentes mesmo. Fomos numa pizzaria. Conversamos e conversamos. Então, na hora de ir embora, eu achava que teria apenas aquele beijo protocolar. Me enganei. Ele me puxou e me deu um puta beijo! Aí, eu senti seu pau duro dentro da calça jeans roçando contra mim. Gostei. Peguei e apalpei aquele troço. Aí, ouvi um leve gemido. Quando olhei pra sua calça, havia uma marca bem ao meio. O cara tinha gozado. Cê acredita? Aí, eu falei: “Vamo, outro dia a gente continua.” Ao entrar em casa, fui direto pro quarto. Coloquei The Spy, e quando Jim começou a cantar I know the dream, that you're dreamin' on eu me… eu me masturbei. Me masturbei ouvindo Doors.”

“Que lindo”, elogio.

Larissa terminou de contar a história de como fora a sua primeira gozada. Ao terminar, ela olhou pro relógio, e disse:

“São 3h. Preciso ir embora, urgentemente.”

Deu-me um leve beijo na bochecha e saiu.

Mulheres...

Folheei Ofício de Viver, do Pavese. Sublinhei algumas frases:

“Fazer poesia é como trepar: a gente nunca sabe se alegria será partilhada.”

Caí na cama.

Angustia matinal. Olhei pela cortina. O dia estava cinzento. Parecia Curitiba, nessa merda.

Eram 13h. Sempre saio da cama depois das 12h. É o segredo pra minha bem sucedida existência, pondero. Pra minha e a dos gatos. Os felinos passam a maior parte do dia dormindo. Não tem preocupação. Por isso são bonitos.

Fritei alguns bifes. Fiz uma salada de alface e tomate. E enchi meu copo de rum. Era um rum vagabundo, de 15 paus, que desceu arranhando a garganta.

Com a barriga cheia, peguei alguns poemas do Chacal. Dei uma foleada. Grifei alguns, caso eu queira ler depois. Veio-me a imagem de Lua em minha cabeça:

“Seu olhar nunca é
De via lata carente
Nem é feito de ameaça
Pastor domingo na praça”

Vodca na geladeira. Maços de Marlboro espalhados pela mesa. Retratos de Jim Morrison e John Lennon pendurados na parede. Larissa me chamou pra beber uma, de leve, em seu apartamento.

“Imagina um bofe vivendo aqui? Ter de dar satisfação e essas merdas. Dividir comida. Transar com a mesma pica todos os dias. Não, não, não”, discorre a anfitriã.

Bofe. Recuso-me a ser denominado como tal. Mais pela fonética do que pelo significado, que, aliás, não encontrei até hoje. Larissa, como toda boa esquerdista, tem suas gírias. Ela chama todos de bofe, de Keith Richards a Paulo Leminski. Seja lá como for um bofe, considero-me delicado e sensível demais pra ser chamado de um troço desses. Quando soube do meu descontentamento com o vocábulo, Larissa deu uma de suas risadas diabólicas, que fazem a gente se mexer um pouco na cadeira e perder a linha de raciocínio.

Se tiver luz acesa, entre para um papo no apartamento de Larissa. Geralmente, a galera que está presente é um bando de intelectuais reclamando da vida, do mundo, das pessoas, da música, da literatura – mesmo sem dominar os velhões da prosa contemporânea -, do cinema. Eles só falam de anarquismo, comunismo, revolução, revolta. Às vezes rola um chororô também. E se não há motivo algum, eles se doem sem um motivo concreto. E tudo embalado ao som de jazz. Ou Tim Maia – os discos do começo da carreira -, ou Tom Jobim, ou Roberto Carlos. De vez enquanto, pinta até os blues carioca de Ângela Rô Rô.

Em certa altura da embriaguez e da conversa, Larissa disse que estava hospedando uma poetiza carioca. Uma poetiza carioca? Sério? Barítono de Jim Morrison ecoa em minha cabeça.

“Porra, poetiza carioca dormindo às três da madrugada, quase nada, como cantou a Gal Costa?, sussurro, alto o suficiente pras minhas palavras encontrarem o ouvido da poetiza carioca.

“Baixou o Torquato no camarada”, diz Zé.

O papo abaixa o volume. Aparentemente, havíamos esquecidos da tal poeta carioca que, segundo Larissa, era jornalista e tinha escritos alguns livros em prosa e verso. Desejo que ela me ouça, que me ame e que me ache genial.

Naturalmente, começo a ficar bobo. A vodca e o fumo fazem efeito. Fico verborrágico, poético – mesmo sem conseguir soar brilhantemente lírico. Completamente ridículo, atesto. Zé me lança alguns olhares jocosos. Foda-se, o Zé. O cara é acostumado a falar até pelos cotovelos no bar.

Ouvimos um barulho que vinha do quarto de Larissa. Era a poetiza que se levantou. Ficamos em silêncio. Então, ela apareceu. Larissa disse:

“Te acordamos?”

“Não. Só quero ir ao banheiro”, diz.

Continuamos a conversa.

A poetiza passou por nós como se nem desse atenção.

“Vou dormir, gente”, avisa a aristocrata dos versos. “Amanhã a gente se fala. Tô morta de sono.”

Zé e eu nos olhamos boquiabertos.   

“Como é o nome dela?”, pergunto.

“Lua”, responde Larissa.

Que criatura estonteante.

Acordo com um martelo dentro de meu cérebro. O dia força a passagem pelas frestas da cortina. Rangido de talheres. Louça sendo lavada. Vozes estridentes. Burocratas em seus ternos. Pessoas conversando sobre suas vidas, seus compromissos. Caralho, hoje vai ser difícil sair da cama.

Vou ao banheiro. Jogo uma água na cara. Melhorou, um pouco. Acendi um cigarro, ao sentar no sofá.

Porra, a Lua.

Eu tinha de vê-la novamente.

Sentei em frente ao computador. Redigi uma crônica sobre Lua. Mandei pro jornal. Crônicas nascem da percepção do escritor. O cara tem de estar atento às coisas que ocorrem ao seu redor. Depois, é só sentar e o resto o teclado faz.

Um dia desses, eu estava contando pro Zé minha breve carreira de poeta. Estávamos no bar. Ele também escrevera poemas.

“Bicho, sinto que a tua escrita é um pouco aleatória”, me disse ele.

Pra isso servem os amigos, pra lhe apoiar nos momentos de fraqueza, pra lhe tirar da fossa.

“Cê tem jeito pra crônica. Eu queria ir pra crônica, mas acabei perdendo muito tempo com a academia. Aliás, ela não me deu nada, do ponto de vista erótico”, desabafou.

“Acho muito difícil alguém sentir tesão em você falando sobre os problemas sócio-políticos do terceiro mundo”, falei.

“Justamente, cara. Olhe pra mim. Falo pra caralho. Escrevi algumas teses. Tese é uma merda. Como diz o Chico, personagem de Tanto Faz, do Reinaldo Moraes: “Tese é a antítese do tesão.” Dificilmente uma mulher vai sentir tesão em saber que eu defendi uma tese sobre o neoliberalismo na vida dos imigrantes da Europa, após a saída do Reino Unido da União Europeia.”

Meneei a cabeça, concordando.

“Zé”, comecei. “Quando eu tinha dezesseis anos, eu andava escrevendo poemas. Tinha uns dois cadernos, cheios de escritos. Conheci uma moça, a Marina. A gente começou a ficar e tal. E eu escrevendo meus poemas...”

“Nessa época, cê comia alguém?”

“Não, cara. O máximo que rolava era um boquete de alguma puta. Eu tinha dezessete anos. Era 2012. Taí, Zé, o que cê fazia em 2012?“

“Tava começando a ganhar uma grana como fotógrafo. E o Corinthians havia ganhado a Libertadores e o Mundial.”

“Pois é. Aí, a Marina me traiu com outro filha da puta do colégio que estudávamos. O cara tinha uma pinta de viado, sabe?”

“Sei.”

“Deve ser por que ele tinha condições financeiras, né”.

“Provavelmente. Pense, Beck: o pai do cara dava tudo pra ele, incluindo um carro, aos dezessete anos! E você pobre, feio, corintiano e bêbado, que rabiscava uns poemas de amor no bar. É foda, bicho.”

Companheiro pra todas as horas, o Zé.

“Eu tava no Parada, boteco que funcionava no centro, perto da UEPG, colocando minhas lamúrias na ponta do papel, quando vi Marina entrar. Fiquei sem reação.”

Zé seguia concentrado na leitura de Diário de um jornalista bêbado. Nem estava prestando atenção no que eu falava. Desgraçado.

Mostrei-lhe meus poemas há uns dois anos. A gente estava bebendo e fumando um du-bão quando dei-lhe meu caderno. Zé leu alguns versos, e fraseou:

“Vai pra crônica, meu. Teu negócio não é poema. Já saquei essa tua ironia machadiana, esse teu deboche rodrigueano. Lembre-se: cê tem que ir pra crônica.”

No som, Monk´s dream, do pianista Thelonious Monk, tocava pela milésima vez. 

Abri os olhos. Primeira constatação do dia: eu existo, eu e as paredes. Elas me olham. Eu as olho. A gente tem uma invejável cumplicidade. Quando me sento em frente ao computador, pra escrever uma de minhas crônicas malucas, tenho-as como companheiras. Thomas Mann também as tinha. E Proust, Machado e todos os seus amiguinhos.

Tenho medo. Medo de chegar aos 50 sem mulher, sem amigos, sem dinheiro. Medo de enlouquecer, como Nietzsche. Estou com a cara mergulhada no ócio. Leio, escrevo, coço o saco e dou uma trepada. Vivo a vida de escritor, cujo maior trabalho fora um ensaio que falava sobre dinheiro. Intitulado de Dinheiro é uma merda, o texto ganhara a primeira página de um jornal. Fora uma pancada no puritanismo. Depois, eles mandaram-me um e-mail dizendo que minhas crônicas, com temática "bruta e linguagem chula", não seriam mais publicadas. Continuei a escrever dando bola e enxugando rum barato. E eles pararam de me publicar.

Tá foda. Não consigo colocar uma ideia no papel. São mil ideias em mente, deve ser por isso. Daí a coisa fica rondando minha psique. Eu deveria fazer como João Cabral de Melo, e encarar a vida sóbrio. Mas é foda. Minha ansiedade alivia quando enxugo uma garrafa de Nattu Nobiles e pito unzinho.

Olho pra garrafa de rum em minha frente. Penso em ir à cozinha e pegar um copo. Talvez eu consiga colocar a porra de alguma palavra no papel, sóbrio. É só sentar e escrever. Mais nada. Beck, cê só precisa pôr essa tua bunda na cadeira e escrever.

Minha crise alcoólica durou apenas alguns segundos. Como não havia motivos pra não beber, fui até a garrafa. Abri e dei um longo trago. Bolei um finório, fumei e quando estava suficientemente bêbado e chapado, sentei-me em frente ao computador e redigi uma carta lírica e desinibida pra Lua.

Essa solidão vai acabar me matando. Após dar um trago e fumar esse baseado, sinto meu coração disparar. Particularmente, prefiro quando ele faz seu trabalho sossegado. Tenho quase certeza de que vou acabar cardíaco, como meu avô. Ele nunca fumou essa merda de maconha, que parece mais ter um monte de esterco de vaca, junto desse rum vagabundo, de 15 paus.

Começo a concordar com Pascal. O homem só vai ter jeito quando souber controlar o seu quarto.

Agora destilo minhas loucuras. À noite, acharei algum bar pra beber com Zé. Ou ele aparecerá aqui em casa de madrugada com doses extravagantes de vinho e fumo na cabeça. Caso isso ocorra, terei de tocá-lo daqui. Ninguém é obrigado a aguentar um bêbado inconveniente. Zé é gente boa. Amigão. Contudo, quando enxuga uma garrafa de Montilla, torna-se o cara mais estranho do planeta. Bate na mesa. Crítica a desigualdade social. Discorre e ironiza a existência de Deus. Pede a prisão e a renúncia de Temer. Zé tem estilo. E, como Bukowski, sabe que o estilo “é a resposta pra tudo”.

seu jeito sedutor 
seu andar harmônico 
a forma com que segura o cigarro 
a forma com que fala com as pessoas 
Lua, cê é incrível

Encontrei-me com ela algumas vezes. Nelson Rodrigues tinha razão: Toda nudez precisa ser castigada. Imagine Lua andando por aí nua. Os velhinhos cairiam duros no ato. Lua despida fez meu coração bater freneticamente dentro do meu peito. Somando-se a isso, sua conversa me deixava preso sobre a mesa do bar. Nem me remexer na cadeira, eu conseguia. Fumava um cigarro atrás do outro. Se algum animal não ficar feliz com a companhia de Lua, filosofo, é porque a felicidade definitivamente não existe. Ela discorre sobre sua vida, sobre seu novo livro, sobre os poemas que está escrevendo. A cada sílaba que sai de sua boca, minha vontade de beijá-la aumenta. Eventualmente, eu esboço algum galanteio. Ela dá risadas. Mulheres com personalidade forte me atraem. Elas são donas de si. Sabem o que querem, e como querem. Diante de uma dama dessas, o cara tem de controlar seu fluxo de pensamento. Frases feitas, jamais. Chavões, nem pensar.

Lua é loucamente sublime.

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