Olho pela
janela. Céu cinzento. Chuva e ar ameno. Acendo um cigarro e penso na vida. Ao
me aprofundar na metafísica do ócio, quase desisto de ir à aula. O cigarro
termina, jogo a bituca fora e decido banhar.
Abro as redes sociais. Perambulo
por alguns sites de notícias. Começo pelo Estadão. Passo os olhos pela coluna
de Arnaldo Jabor. Reacionário, ele, reconheço, escreve com ironia peculiar. Bom
texto, tirando seu posicionamento político. Em seguida, leio o editorial de Carta Capital. Assim como Jabor, Mino
também coloca algumas pitadas de deboche em seus textos. No Facebook, descubro
que o velho Bukowski faria 96 anos, hoje (16), se estivesse vivo. Autor de
Mulheres, Buk morrera aos 74 anos, de leucemia, em Los Angeles. Dirty old man da literatura estadunidense. Poeta fodido, o
velho Buk.
Ontem, antes de dormir, por volta
das 23h, fui surpreendido por um poema de Lua. Eu havia tecido a ela uma carta
sentimental e carinhosa sobre seus escritos – dessas que estão em falta, na era
tecnológica. Lúgubre, a noite ficara melhor, ao ler os versos dela. Ainda bem
que Lua gostara de minhas linhas tortas, porque eu estava com a cabeça
transbordando paranoias, já. Cheguei a cogitar a ideia de que minha carta tinha
ficado uma preciosa merda.
Caminhando pelas calçadas, penso
no roteiro que tenho de escrever. Cinema é foda. Não que seja complicado
escrevê-lo, mas a tarefa torna-se porque o filme vai ser exibido na Tv Puc, que
é uma emissora católica. Palavrões, nem pensar. Cenas escatológicas? Tá louco.
Bebedeira, então, muito menos. Ao ponderar essas incongruências, começo a crer
que ficarei sem texto, em algum momento da vida.
Minha escrita gira em torno da
boa e velha esbórnia noturna. Escrever histórias civilizadas é complicado. O
texto fica maçante, chato e forçado. Deve ser por causa dos meus critérios
literários. Há tempos não leio ninguém “equilibrado”. Já os li demais. Agora,
procuro o conforto dos predicados e verbos delirantes. Para me seduzir, a obra
tem de ter algum maluco, bêbado ou drogado. Exceto Horizonte Perdido, livro que Lua me emprestou. Identifiquei alguns
problemas na construção do personagem principal, Conway, mas o enredo é bem
amarrado.
William Burroughs, Jack Keroauc, Lawrence
Ferlinghetti, Rimbaud e Baudelaire. Os bons. Os loucos. Os que não propagam
chavões por aí. Mas viveram, viveram a sarjeta que o capitalismo do primeiro
mundo lhes fornecia.
Chego à faculdade. Ao descer a
rampa que leva às lanchonetes, escorrego no piso molhado pela água da chuva e vou
em direção ao chão. Bato as costas, violentamente. Devo ter fraturado umas duas vértebras da coluna. Uma moça que está ao meu
lado não segura a gargalhada. Finjo que não é comigo, levanto e sigo minha
caminhada. Um Nike, de R$ 150,00, quase contribui para partir-me o crânio ao
meio, constato. Cogito a hipótese de arremessá-lo no meio da Fuad José Sebba.
Com pouco esforço, desisto desta
insanidade.
Conto as moedas e compro um café.
Café e Marlboro vermelho são
imprescindíveis para acordar, filosofo.
Resmungo algo, aleatoriamente.
Porra, semestre passado eu pagava 75 centavos num copo de café, pela metade.
Agora, inventaram que a bebida precisava ser reajustada. Fico pensando o preço que estará quando eu me formar.
Acomodo-me no chão. Tiro Assim falou Zaratrusta, de Nietzsche. À
medida que vou lendo a obra, sublinho alguns trechos. Nietzsche é foda. Leitura
que digere com certo empenho. Especificamente, em Assim falou Zaratrusta - seu livro mais poético -, Nietzsche discorre sobre os valores
impostos pela cultura judaico-cristã. Vivemos sobre a batuta da bíblia, dos
provérbios.
Com o pensamento a mil por hora,
vou ao banheiro. Jogo uma água no rosto.
Ao sair, dou de cara com Zé.
“E essa roupa social?”, pergunto,
jocosamente.
“Lancei”, responde ele, com um
sorriso desonesto estampado à face.
O cara estava com uma camisa
xadrez, calça jeans larga, de maluco, e um tênis que aparentava sinais de luta.
“Porra”, disse Zé. “Tava na aula
de psicologia ali e a professora falou: “esse semestre vai?”. Fiquei sem saber
o que dizer, cara.”
“Foda. Quem é a professora?”
“Mara Rúbia.”
“Grande Mara Rúbia”, murmuro.
“Grande Mara Rúbia”, repete Zé,
com a voz de um tarado depravado.
Mara Rúbia é maravilhosa. Cabelos
longos, lisos, escuros. Voz aguda, cujos ensinamentos de Freud fixam na mente.
Mara Rúbia, por si só, já é um pretexto considerável para ir às aulas de
Psicologia.
Compramos um palheiro. Demos uma
tragada, cada um. Reclamamos da pouca qualidade do fumo que entra em nossos
pulmões, deixando a voz grave como a de um velho que fumou, durante toda a
vida, três maços de Hollywood vermelho todo dia. Sem contar na revolta que o
Piracanjuba Ouro causa no sistema gástrico. Uma mistura bizarra de dor, fome e
sede lhe ganha. Sem dúvidas, uma lúdica merda.
“Olha essa mima”, fala Zé.
“Quem?”, indago.
“A Michelle.”
“Gostosa”, digo.
“Ela posta umas fotos no
instagram, do caralho, literalmente.”
“Se o cara tiver meio
necessitado, senta em frente ao pc, abre o instagram da mima e punheta-se”,
afirmo.
Zé ri.
Observação característica dos
machos de outrora, a minha.
Olho o visor de meu celular: 9h.
A segunda aula vai começar. Subimos à sala. Zé, que não assiste aula comigo por
conta de alguns entraves em sua grade, iria absorver os conhecimentos teóricos
do jornalismo com uma turma tipicamente de ensino fundamental.
Após findar a aula, encontro-o,
para variar, bebendo água. Ele me convidou para darmos uma bola, saudavelmente.
“E o cantil?”, questiono.
“An...”, se faz de desentendido, o
Zé.
“O teu cantil, cacete. Cê não
trouxe, né?”
“Não, cara.”
“Por quê?”
“Beber cedo é foda. Me sinto um
alcoólatra profissional, quando beberico o trem às 7h da amanhã, com a maconha
na boca.”
“hahahahaha”, sorrio.
Em seu velho Nokia, Zé pôs The
end, do Doors, para tocar.
Suficientemente chapados,
resolvemos ir embora. Conosco, estava Gizelle – que a galera chama,
carinhosamente, de Gi. Ao despedir-me dela, protagonizei uma cena lamentável.
Meu cérebro e corpo não conseguiram entrar em um consenso. Dei-lhe um
protocolar beijo nas bochechas, só que meu corpo travou e eu não consegui me
inclinar para abraçá-la. Caceta. Que cara estranho eu sou, pensei.
Fomos em direção ao ponto. A
linha 580, terminal Araguaia a Praça da Bíblia, demoraria cerca de dez minutos
para passar. Zé, com pouca disposição de esperar o coletivo, sugeriu:
“Vamo de Uber”, disse ele.
“E a grana?”
“Grana? Que nada. Olho só, bicho.
A gente entra no carro, pede pro cara nos deixar na Caixa, ali na Vila Nova.
Aí, saímos e falamos que vamos ao banco.”
“Os dois?”
“Sim. Se ele falar qualquer
coisa, a gente diz que cê vai junto porque caso meu cartão não passe o seu
passa.”
“Ideia brilhante. Eu animo”, eu
digo.
“Os motoristas são de boa. Não
vai dar nada.”
“Além de que eles sabem se virar,
cara. E outra: alguém tá ganhando grana demais, com esse negócio de Uber”,
constato.
O quê é uma conta de Uber sem
pagar? Meu Deus, aonde foram parar meus princípios humanísticos? O capitalismo
me transformou em um animal deplorável, um fora-da-lei irremediável.
Acomodamo-nos no banco do ponto,
fumamos o resto do palheiro e o ônibus, enfim, apontou na esquina. No coletivo,
observo dois malandros. O primeiro está em frente a catraca. Penso em lhe
estilhaçar todos os dentes pelo chão, mas não é preciso.
Na Praça da Bíblia, Zé comentou:
“Motora queria dar uma de bom
samaritano.”
“Hahahahaha. Zelador dos bons
costumes.”
Os malandros pularam a catraca do coletivo. Inconformado, o motorista se recusou a arrancar o ônibus, o quê causou revolta nos passageiros.
Ao nosso lado, uma moça começou a
conversar conosco. Ela conta sobre algum problema que houve com algum
motorista, em algum dia que não conseguiu pegar o coletivo.
O 401 (Praça da Bíblia a Praça A)
chega. Entramos dentro do ônibus. Milagre, o veículo não está transbordando
gente. Indignada, a moça continuou a falar sobre a safadeza que o motorista
havia lhe feito. Acomodei-me no fundo, porém aquela conversa roubava a pouca
disposição que eu tinha. Sinceramente, não queria ouví-la. Então, saí, à
francesa, e fui para a primeira porta do coletivo.
“Cê deixou a mulher falando
sozinha?”
“Não. Só saí”, eu disse a Zé.
“Hahahahahaha”, riu. “Que cena
bizarra.”
“Bizarra ou filha da puta, depende
do ponto de vista”, falei.
“Escreva um texto sobre isso,
meu”, sugeriu. “Vai ficar cômico.”
A moça era gente boa, até.
Terça-feira brava.
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