Gente por todos os lados. Malucos
com camisetas de bandas de rock. E, no palco, um cara grita palavras, que pela
altura do som, se tornam incompreensíveis. Este é o Goiânia Noise, que
aconteceu entre 1 e 7 de agosto, no Centro Cultural Oscar Niemayer. A vigésima
segunda edição do evento contou com atrações como Nação Zumbi, Sepultura e
Black Alien. Milhares de pessoas foram prestigiar os três dias de rock e
exposições culturais.
Era 19h. Estávamos entorpecidos
pelo poderoso White Horse, de Zé.
“Cê tá com o teu ingresso aí,
cara?”, perguntou Zé – o Dean Moriarty do Cerrado.
Desgraçado. Não está comigo, não.
Meu ingresso ficou em casa, terei de voltar a pé para ir buscá-lo nas
imediações do Criméia Leste e chegarei aqui, novamente, por voltas das 08h,
resmunguei nas profundezas de minha psique.
Levantei o mísero papel, e
mostrei-lhe. Ele deu de ombros, e disse:
“Porra, nunca é demais perguntar”,
garganteou. “Cê é burro.”
“Burro?”, redargui. “Meu, me dá
um cigarro.”
Ele esticou um Marlboro vermelho.
Cigarro que o doidão do Hunter
Thompson fumava quando escrevia suas reportagens subjetivas e desvairadas. Em
1972, a Sport Illustred havia lhe
escalado para cobrir uma corrida de motocicletas no deserto de Las Vegas. Como
a cobertura jornalística convencional era impossível, ele mergulhara no
“american way of life”. Thompson nunca entregara a reportagem sobre a corrida,
mas, meses depois, aparecera na redação da Rolling
Stone, com uma cerveja na mão, fumando sem parar e com uma série de
manuscritos numa pasta. Em seguida, o texto fora transformado em livro.
Intitulado de Medos e Delírios em Las
Vegas, a obra se tornou um clássico do jornalismo gonzo – a forma mais
louca de narrar uma história.
Zé vestia uma camiseta gigante do
The Doors, cuja estampa era Jim Morrison. Somos fã de Jim. Descobri os poetas
marginais através dele. Provavelmente, eu seria um sujeito estranho se não
tivesse sido contaminado pelos versos de Rimbaud e Artuad. Os escritos me
tiraram da zona de conforto, e me possibilitaram pular a janela e abraçar a
noite. Lá fora, as pessoas eram mais alegres e felizes.
Jogamos os latões de cerveja
fora. Nathália ainda bebia a sua, enquanto Zé foi caminhando em direção à
entrada. Observei-o e xinguei-o, mentalmente. Ele entrou. Nathália, também. Fui
barrado.
“O que você tem no bolso?”,
perguntou o segurança.
“Celular”, falei, mostrando-lhe o
dispositivo telefônico.
“E aqui?”, indagou, com as mãos
em meu bolso direito.
“Aqui, bicho, é o meu isqueiro e
carteira”, expliquei.
“Posso ver?”
“Claro”, eu disse, acendendo o
cigarro com meu delicado clipper cor-de-rosa.
Ao tirar a carteira para mostrar
ao segurança, minha identidade caiu no chão junto com a chave de casa e outros
pertences.
“Pode ir. Bom show”, sacramentou
o guarda-costas, com a feição espetacularmente feia.
Não é bom nem olhar muito para um
cara desses, pensei.
Imediatamente, Zé começou a mexer
o esqueleto. Era uma cena deplorável de se ver. Nathália, com mais coordenação
motora e desenvoltura, conseguia acompanhar o ritmo alucinado que era tocado no
palco. Eu apenas ouvia ruídos ensurdecedores de guitarra elétrica, e não
conseguia identificar se era Punk, Hard Rock ou metal.
Olhei para o meu lado. Três
homens de mais ou menos uns trinta anos estavam parados. Eles tinham o
semblante fechado. Pouco sorriso no rosto. Segui em frente, e Zé teve a
brilhante ideia de comprar uma cerveja.
“Quanto é a breja?”, perguntou Dean
Moriarty do Cerrado.
“Heineken é 10”, respondeu a moça.
“10?”, certificou-se, espantado, Zé. “Não tem outra, não?”
“Tem.”
“Qual?”
“Kaiser.”
“Quanto é?”
“5.”
“Me dá três.”
A moça escorregou a ficha sobre o
guichê e, enquanto isso, a outra caixa deixara cair seus equipamentos de
maquiagem. Demos uma amigável risada, e viramos as costas.
Dei uma olhada em meu celular.
Era 21h. Aproximamo-nos do palco. Os curitibanos do Hillbilly Rawhide mandavam
um country rock e rockabilly ao melhor estilo Johnny Cash. Geralmente, as
histórias das letras se passavam nos Campos Gerais - região metropolitana da
capital paranaense. Pelo menos não ouvíamos algum guitarrista demente mandar
power-chords infantis - que mais parecem serem tocados por uma criança que faz
aulas de guitarras com algum professor pirado.
“Hoje eu acordei/bebi tanta
cachaça/que não consigo me lembrar”, cantou Mutante Cox, vocalitsta do
Hillbilly Rawhide, desenhando alguns acordes em sua cansada Stratocaster
vermelha, que parecia ter sido tocada por algum blues man nos anos 50.
A apresentação dos paranaenses
acabou. Zé, Nathália e eu fomos para o outro palco, onde acontecia uma batalha
de rap. Não se trata de meu gênero musical predileto. Algumas canções repudio
tanto pelo ritmo, que qualquer ser humano é capaz de tocar, como pelo conteúdo
das letras. Sim, não se pode generalizar e afirmar que todo rap é horrível. É
como Beatles: algumas canções são boas. E ponto.
Ficamos por lá alguns minutos.
Avisei aos amigos que iria ao banheiro. Eles disseram que permaneceriam em
frente ao palco. Ao voltar, constatei que eles estavam no mesmo lugar. Isso que
é solidariedade ao amigo, pensei. Após alguns minutos ouvindo aquela verborragia
inenarrável, resolvemos sair.
Quanto tempo falta para o show do
Nação Zumbi? Uma hora? Teríamos de esperar sessenta minutos para, enfim,
vê-los. Eu já sentia o álcool correr pelas minhas veias, chacoalhar as
membranas de meu cérebro e me fazer ter outra percepção sobre as coisas ao meu
redor. Estava em uma linha tênue entre a embriaguez honesta e civilizada, e entre
a inconveniência.
“Mais uma?”, me perguntou Zé.
“Opa”, murmurei.
Zé trouxe duas latinhas.
Ficamos conversando. Ora nos
falávamos. Ora nos calávamos. Eu e Zé sabemos o momento em que temos de ficar
quieto. Deve ser por isso que somos amigos. Em algum ponto da bebedeira
calamo-nos e ficamos apenas viajando no emaranhado dos pensamentos. E Nathália,
inebriada pelo furor etílico, também contemplava o silêncio. Laconismo nunca
foi problema conosco.
Neste momento, passara por mim
uma garota de cabelos ruivos que me despiu o bom-senso. Eu queria levantar e ir
em direção a ela, e dizer a amava. Depois, decidi que não seria interessante
sair feito um maluco depravado atrás de uma beldade. A moça teria acompanhante,
certamente. Imagine arrumar uma confusão vinte minutos antes de começar o show
do Nação Zumbi. Eu pularia no meio da galera com o olho roxo, mesmo. Isto não
seria favor primordial para eu ir embora, nunca.
Dean Moriarty do Cerrado bebia
sofregamente. O imbecil, ainda, se movimentava em meio a multidão de uma forma
frenética e esquisita. Mas Zé não está nem aí. Ele tem um senso de indiferença
invejável, por isso comparo-o ao mítico personagem de On The Road, Dean Moriarty. Também sou indiferente, porém
preocupo-me demais com certas pessoas e situações. Eu deveria fazer como Zé:
chutar a barraca.
O aguardado show do Nação Zumbi
começara. Senti o primeiro acorde ser tocado pelo guitarrista Lúcio Maia. Não
era nenhum clássico do primeiro disco, Da
lama ao caos, de 1994, mas era uma boa canção para se ouvir bêbado, de
madrugada, num festival de rock. Estava dentro dos conformes. Há uns seis,
setes metros, Zé pulava e gritava palavras impronunciáveis.
Quando retornamos à realidade,
era 5h da madrugada. Zé loucão. Eu pior. E Nathália, com o semblante de quem
iria dormir em algum ponto do trajeto para a casa, tentava manter-se em pé. Nós
três pegaríamos a mesma condução: o novo e eficiente Uber. Agora, os caras
aceitam dinheiro. Facilitou demais a vida dos boêmios invertebrados, Brasil afora.
“Me empresta o teu celular”,
pediu Zé.
“An...”, resmunguei, com a voz
arrastada de cerveja e uísque.
“Me empresta o teu celular,
porra!”, bradou, com o timbre de voz desnecessariamente alto.
“Não sou surdo, cara”, reclamei.
“Pega essa merda”, eu disse, passando-lhe meu humilde Samsung.
Temos modernos. Se você pensar,
há dez anos era um pouco mais complicado voltar para a casa, após uma noite de
bebedeira ou show. Havia duas opções aceitáveis: ou esperava o primeiro ônibus,
às 5h30, ou pagava um taxi. E, na pior das hipóteses, ligava para o pai. Hoje,
não. Com um smartphone, chama-se um Uber e vai para a casa, confortavelmente. É
a evolução.
Sabiamente, Zé pôs Somedoby to love, do Jefferson Airplane.
Música sempre foi um combustível
para mim. Quando escrevo meus textos, tenho o rádio ligado no último volume. A
música certa faz um carro se mover, sem gasolina, de madrugada. Zé sabia o que
se passava pela minha cabeça, e tratou de colocar a voz flamejante de Grace
Slick, no alto falante do celular, que me movimenta pela noite que insistia em
ir embora.
Zé levou um cigarro à boca, e
passou o maço a mim.
Entramos no carro. Era um Siena,
em bom estado de conservação. O motorista logo se apresentou:
“E aí, galera?”, saudou Lincon.
“Beleza”, dissemos.
“Vão pra onde?”
“Vila Nova”, falou Zé. “Mas antes
tenho de passar num banco pra sacar uma grana.”
“Sossegado”, falou o cara.
Lincon ligou o carro. No rádio,
um som depressivo e indecente, que não sei identificar, tocava.
“Bicho”, disse Zé. “Tem como cê
mudar de música?”
“Tá ruim?”
“Sim”, respondi.
Lincon mudou a estação do rádio. Ouvi
um blues. Pedi para deixar. Na Executiva, Smokestack
lightning, do Howlin Wolf, entoava.
Blues é bem melhor.
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