terça-feira, 31 de maio de 2016

Que merda, José

Entrei no coletivo. Passei pela catraca, e fui sentar-me no fundo. Eram 12h. O suor escorria em meu rosto. Eu estava voltando da faculdade, após um dia tranquilo. Tive uma aula de Telejornalismo e Redação Jornalística II. O ônibus parou no primeiro ponto da Avenida Araguaia. Uma linda loira de olhos verdes entrara, e fora ao fundo à procura de um lugar. Ofereci-lhe meu assento.

“Pode se sentar, moça”, disse, levantando-se do banco.

“Ah, sim”, falou, abrindo um leve sorriso. “Obrigado pela gentileza.”

“Por nada”, falei.

Dois alunos de um colégio de ensino fundamental e médio olhavam pra ela. Concentrei-me na conversa deles.

“Porra, que gostosa”, falou.

“Pois é”, emendou o outro. “Eu comeria demais.”

O primeiro dera uma risada sádica. Continuei a fitá-los.

“Enfiava a pica até sangrar, cê pira”, declarou.

“Piro demais”, concordou.

Pelo conteúdo altamente inteligente do diálogo e um conhecimento acima do normal sobre as mulheres, eles não deleitavam-se com a nudez feminina há um tempo.

Nesta altura, o coletivo já estava lotado. No meio, em frente à primeira porta de saída, um sujeito parou e esfregou o pau, propositalmente, sobre a bunda de uma outra garota. Cena deprimente. Ela tentara desvencilhar-se do demente. Dera um passo pro lado, e o sujeito também – sempre se mantendo atrás dela, numa posição pouco educada e vulgar, com o propósito de roçá-la, romanticamente, dentro de um busão transbordando gente, às 12h42, sobre o sol goianiense.

Era um absurdo imensurável de se ver.

A gente, sensíveis às damas, não sabe o que é um assedio na rua. A gente, que tenta eliminar o machismo por atos e palavras, acabamos, eventualmente, tendo algum comportamento chulo e trivial. O fantasma do estupro não nos ronda a cada onze minutos, porque nascemos com o privilégio de sermos homens. Por mais que condenemos os machos que procuram uma “vadia” pra transar, num bar, ainda existirá a falsa dicotomia entre mulher pra casar e transar. Por mais que condenemos o discurso e as posturas de Bolsomitos – que bradam a plenos pulmões barbáries de sangrar os ouvidos – ainda haverá discursos simplistas e superficiais. Por mais que fundemos coletivos feministas, nas universidades, ainda terá quem desqualifique os movimentos sociais. Por mais que escrevamos crônicas e contos e poemas e reportagens sobre a desigualdade de gênero, ainda teremos de ver Reinaldos Azevedos por aí. Por mais que repudiemos Alexandre Frota palpitando no MEC (Ministério da Educação), ainda será preciso aguentar suas “piadas” que reforçam a cultura do assédio e estupro. Por mais que façamos a empatia, nunca saberemos a ferida que se abrirá na alma de quem sofreu um pesadelo descomunal, de quem foi abusada sexualmente, como a adolescente de dezesseis anos, brutalmente violentada no Rio de Janeiro.

Por mais que leiamos Virginia Wolf,  por mais que nos empolguemos com os relatos picantes de Anais Nin, em Delta Vênus, não saberemos por que as mulheres não podem falar sobre sexo, como nós, homens. Por mais que sejamos fãs de Truffaut – o cara que nascera pra filmar o amor, como já eu disse inúmeras vezes neste espaço -, não saberemos o porquê de tanta grosseria e desumanidade às mulheres. Por mais que reflitamos sobre as ideias de Weich não saberemos o que elas, diariamente, passaram ao sair com uma roupa um pouco decotada.

Por mais que tenhamos ideia da maldade humana em livros como Bonitinha, mas ordinária. Por mais que façamos uma regressão histórica de nosso modus operandi. Por mais que critiquemos os reacionários, que clamam ao machismo. Por mais que fiquemos com vergonha, todos nós, machistas e burros. Por mais que tudo isto acontecesse, a gente estará, apenas, começando a entender a cultura do estupro.

Cessei o devaneio.

Apertei a campainha pra descer. O motorista parou em frente a uma banca de revista. Dei uma olhada pra moça, para a qual cedi meu lugar. E, depois, fitei a outra. Esta tinha o desdém, a insegurança, o asco, o horror, o nojo em suas pálpebras. “Puta merda”, vociferei, saindo do ônibus.

Entrei na banca de revista, e falei:

“Me dá um O Popular, por gentileza.”

“É pra já”, disse o dono.

“Que merda, viu”, esbravejei.

“Quê foi?”, perguntou o cara.

“Porra, acabei de ver uma cena ridícula”, falei. “Dois caras super idiotas. Os primeiros, eram dois adolescentes se referindo à uma linda loira de forma cretina...”

“E o outro?”

“Um virjão que não dá uma transada há dez anos, roçando o pau na calça da mina.”

“Complicado.”

“Pois é”, eu disse.

“Tá aqui”, falou o cara da banca, escorregando o jornal até minha direção. “Dois e cinquenta.”

Estiquei uma cédula de dois conto, uma moeda e agradeci:

“Valeu. Boa tarde.”

O mundo é bonito na teoria. 

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