Entrei no coletivo. Passei pela
catraca, e fui sentar-me no fundo. Eram 12h. O suor escorria em meu rosto. Eu
estava voltando da faculdade, após um dia tranquilo. Tive uma aula de
Telejornalismo e Redação Jornalística II. O ônibus parou no primeiro ponto da
Avenida Araguaia. Uma linda loira de olhos verdes entrara, e fora ao fundo à
procura de um lugar. Ofereci-lhe meu assento.
“Pode se sentar, moça”, disse,
levantando-se do banco.
“Ah, sim”, falou, abrindo um leve
sorriso. “Obrigado pela gentileza.”
“Por nada”, falei.
Dois alunos de um colégio de
ensino fundamental e médio olhavam pra ela. Concentrei-me na conversa deles.
“Porra, que gostosa”, falou.
“Pois é”, emendou o outro. “Eu
comeria demais.”
O primeiro dera uma risada
sádica. Continuei a fitá-los.
“Enfiava a pica até sangrar, cê
pira”, declarou.
“Piro demais”, concordou.
Pelo conteúdo altamente
inteligente do diálogo e um conhecimento acima do normal sobre as mulheres,
eles não deleitavam-se com a nudez feminina há um tempo.
Nesta altura, o coletivo já
estava lotado. No meio, em frente à primeira porta de saída, um sujeito parou e
esfregou o pau, propositalmente, sobre a bunda de uma outra garota. Cena deprimente. Ela tentara
desvencilhar-se do demente. Dera um passo pro lado, e o sujeito também – sempre
se mantendo atrás dela, numa posição pouco educada e vulgar, com o propósito de
roçá-la, romanticamente, dentro de um busão transbordando gente, às 12h42,
sobre o sol goianiense.
Era um absurdo imensurável de se
ver.
A gente, sensíveis às damas, não sabe
o que é um assedio na rua. A gente, que tenta eliminar o machismo por atos e
palavras, acabamos, eventualmente, tendo algum comportamento chulo e trivial. O
fantasma do estupro não nos ronda a cada onze minutos, porque nascemos com o
privilégio de sermos homens. Por mais que condenemos os machos que procuram uma
“vadia” pra transar, num bar, ainda existirá a falsa dicotomia entre mulher pra
casar e transar. Por mais que condenemos o discurso e as posturas de Bolsomitos
– que bradam a plenos pulmões barbáries de sangrar os ouvidos – ainda haverá
discursos simplistas e superficiais. Por mais que fundemos coletivos feministas,
nas universidades, ainda terá quem desqualifique os movimentos sociais. Por
mais que escrevamos crônicas e contos e poemas e reportagens sobre a
desigualdade de gênero, ainda teremos de ver Reinaldos Azevedos por aí. Por
mais que repudiemos Alexandre Frota palpitando no MEC (Ministério da Educação),
ainda será preciso aguentar suas “piadas” que reforçam a cultura do assédio e estupro.
Por mais que façamos a empatia, nunca saberemos a ferida que se abrirá na alma
de quem sofreu um pesadelo descomunal, de quem foi abusada sexualmente, como a
adolescente de dezesseis anos, brutalmente violentada no Rio de Janeiro.
Por mais que leiamos Virginia
Wolf, por mais que nos empolguemos com os
relatos picantes de Anais Nin, em Delta
Vênus, não saberemos por que as mulheres não podem falar sobre sexo, como
nós, homens. Por mais que sejamos fãs de Truffaut – o cara que nascera pra
filmar o amor, como já eu disse inúmeras vezes neste espaço -, não saberemos o
porquê de tanta grosseria e desumanidade às mulheres. Por mais que reflitamos
sobre as ideias de Weich não saberemos o que elas, diariamente, passaram ao
sair com uma roupa um pouco decotada.
Por mais que tenhamos ideia da
maldade humana em livros como Bonitinha,
mas ordinária. Por mais que façamos uma regressão histórica de nosso modus
operandi. Por mais que critiquemos os reacionários, que clamam ao machismo. Por
mais que fiquemos com vergonha, todos nós, machistas e burros. Por mais que
tudo isto acontecesse, a gente estará, apenas, começando a entender a cultura
do estupro.
Cessei o devaneio.
Apertei a campainha pra descer. O
motorista parou em frente a uma banca de revista. Dei uma olhada pra moça, para
a qual cedi meu lugar. E, depois, fitei a outra. Esta tinha o desdém, a
insegurança, o asco, o horror, o nojo em suas pálpebras. “Puta merda”,
vociferei, saindo do ônibus.
Entrei na banca de revista, e
falei:
“Me dá um O Popular, por
gentileza.”
“É pra já”, disse o dono.
“Que merda, viu”, esbravejei.
“Quê foi?”, perguntou o cara.
“Porra, acabei de ver uma cena
ridícula”, falei. “Dois caras super idiotas. Os primeiros, eram dois adolescentes
se referindo à uma linda loira de forma cretina...”
“E o outro?”
“Um virjão que não dá uma
transada há dez anos, roçando o pau na calça da mina.”
“Complicado.”
“Pois é”, eu disse.
“Tá aqui”, falou o cara da banca,
escorregando o jornal até minha direção. “Dois e cinquenta.”
Estiquei uma cédula de dois
conto, uma moeda e agradeci:
“Valeu. Boa tarde.”
O mundo é bonito na teoria.
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