terça-feira, 1 de março de 2016

Uma latinha de Coca-Cola

Que calor. Passei pela catraca. No primeiro banco, um cara estava vibrado em seu smartphone. Atrás, outro nem piscava pelo mesmo motivo. Pra variar, o coletivo tinha gente pendurado até nas janelas. A linha 580 – terminal Araguaia a Praça da Bíblia – é um inferno nos horários de pico. Estiquei meu braço, e me segurei firme em frente aos internautas. O motorista aparentava pressa. Não estava nem aí se transportava pessoas, ou qualquer outro ser. Ele conduzia-nos com fugacidade.

O suor escorria em minha face.

Raphael disse:

“Esse baú é a latada.”

“E essa esquizofrenia virtual?”, indaguei.

Raphael gargalhara. Ele sabia a quem minha verborragia era destinada.

“Porra, tem gente pra tudo que é lado”, constatou Raphael.

Meneei a face, concordando. Realmente, apanhar o coletivo ao meio-dia é tarefa pra poucos. Acredito que só a disposição de ir à faculdade, ao trabalho, ou a qualquer lugar, de ônibus, já é um empenho louvável.

Chegamos à Praça da Bíblia, depois de uns 15 minutos. O coletivo parou no primeiro ponto, do 027. Descemos, e perdemo-nos na multidão. Quanta gente. E todos se sujeitam a isso, todos os dias, por um simples motivo: sobrevivência. Quem vive sem grana? É a esperança de dias melhores. É um amontoado de fatores, que fazem as pessoas saírem de suas casas, dançar a música que lhes foi imposta. Tudo por dias ensolarados, ao invés dos lânguidos e sombrios, a que fomos habituados.

Parei no ponto do 020. Despedi-me de Raphael. E acendi um cigarro. Ao meu lado, uma moça, que aparentava ter uns 35 anos, estava com duas crianças. Um menino e uma menina. As crianças tinham o olhar inocente, de quem ainda não foi contaminado pelas “regras”.

“Tô com fome, mãe”, relatou a menina.  

“Também, minha filha”, disse a jovem mãe, passando a mão nos cabelos da filha.

“Vamo cumê, quando?”, indagou o menino.

A mulher não soube o quê responder.

Passei a mão pelo meu bolso com o propósito de dar-lhes um trocado. Mas não encontrei nada, nem uma inútil moeda de cinco centavos. Tinha apenas um Marlboro. Concluí que não seria o melhor apresso do universo, oferecer um pito.

Somos fadados a reclamar, refleti. Reclamamos do som. Reclamamos do trabalho. Reclamamos das regras do jogo, dos chavões, das frases feitas, dos clichês arrogantes dos burocratas.

A menina abrira um prazeroso sorriso. A mãe trouxe-lhe uma latinha de Coca-Cola. Ela degustou aquela bebida com deleite invejável. A menina dera alguns goles, e passara-a ao irmão, que, também, dera um longo gole.

Uma simples latinha de Coca-Cola. Pra alguns, uma merda. Pra outros, a salvação. Não sei bem ao certo o que aquelas crianças sentiram ao bebê-la. Sei, apenas, que foi comovente observá-las.

“Obrigado, mãe”, agradeceu a menina.

“Agora, ficamo sem dinheiro”, alertou, no alto de sua humildade.

O 020, enfim, chegara. Como de costume, todos entraram numa velocidade frenética. Se você não se posicionar de forma cautelosa ali, é jogado pra dentro do coletivo.

Fiquei parado ao lado da porta. Quando todos entraram, acomodei-me próximo a uma garota loucamente cheirosa. Seu aroma alegrou-me. Os dias que são estranhos tornam-se leves e suportáveis. No fim, é tudo por ela. Ou pra elas.

Enquanto alguns gozam seus relógios de cinco mil, outros suplicam por uma simples latinha de Coca. 

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