Jim Morrison tinha alma de artista. Cantor, letrista e
poeta, estudou cinema na UCLA (Universidade da Califórnia). Em 1969, após show
em Miami – em que exibiu a genitália –, a Rolling Stone EUA o entrevistou.
O jornalista Terry Hopkins revelou os bastidores da conversa. “Ele
achava que a cobertura da revista sobre o catastrófico show em Miami o fez
parecer um palhaço. No final, mudou de ideia”, contou. Morrison não entrou em
detalhes sobre sua vida pessoal. Mas ele sentiu-se a vontade para comentar os
tumultuados shows do Doors e ainda aproveitou para falar sobre a sua relação com a poesia. “Acho
que foi quem me ensinou a falar, a conversar. De verdade. Acho que foi a
primeira vez em que aprendi a falar. Até o advento da linguagem, era o toque –
comunicação não verbal”, disse.
Morrison com o famoso cabelo "Alexandre, o Grande" |
ENTREVISTA
Os Beatles e outros artistas parecem ter voltado às
raízes, ao som básico...
Sim, o country e o blues, é isso. As pessoas têm esses novos
poços de informação e ideias, e isso foi bem longe. E, um dia, parou. Então,
agora as pessoas estão voltando a esta forma básica de música. Obviamente, haverá
uma nova síntese – provavelmente daqui a dois ou três anos. O ciclo parece ter
essa
duração; essa é a duração de uma geração agora.
Você quer dizer uma nova síntese entre o country e o
blues?
Não sei, cara. O rock era isso, country e blues. Há muitos
outros elementos dos quais as pessoas ficaram cientes, como música indiana,
oriental, africana e eletrônica. Provavelmente seria uma síntese disso, uma
síntese muito louca. Acho que, nos Estados Unidos, voltamos ao blues e country
porque são nossas duas formas de música nativas. Sabe o que pode acontecer? As
grandes mentes musicais que tratavam de coisas clássicas podem entrar em áreas
populares.
Você já tocou algum instrumento musical?
Quando era criança, tentei piano por um tempo, mas não tinha
disciplina para continuar. Tentei por uns meses. Acho que cheguei até o livro
do terceiro nível.
Tem vontade de tocar um instrumento hoje?
Na verdade, não. Toco maracas. Consigo tocar algumas músicas
no piano. Só minhas invenções, então não é realmente música; é barulho. Consigo
tocar uma, mas ela só tem duas mudanças, dois acordes, então é bem básica.
Realmente gostaria de conseguir tocar guitarra, mas não tenho o sentimento
necessário.
Como foi o começo do The Doors na gravadora
Elektra?
A Elektra na época era nova na cena do rock. Tinha o Love e
a Paul Butterfield Band, que estava mais no blues e folk. O Love era a primeira
banda de rock com potencial da Elektra para o mercado de singles, já que a
Elektra era predominantemente uma gravadora de álbuns. Depois de contratar o
Love, o presidente da empresa [Jac Holzman] nos ouviu tocar no Whisky a
Go Go. Acho que ele me contou uma vez que não gostou. Ele voltou outras vezes e
enfim todos na gravadora estavam convencidos de que faríamos muito sucesso.
Então, nos contratou.
É verdade que você gostaria de voltar aos tempos que a
banda tocava no Whisky a Go Go?
Só digo que algumas das melhores viagens musicais que
fizemos foram em clubes pequenos. Grandes shows são ótimos, mas entram em um
fenômeno de multidão que realmente não tem muito a ver com a música. Em um
clube, a atmosfera é diferente. Eles podem ver você suar e você consegue
vê-los. E há muito menos bobagem. Em um show em estádio, você reúne muita gente
e não importa tanto o que faz. Em um clube, tem de empolgar as pessoas só com a
música. Se não der certo, todos percebem.
É mais difícil fracassar em um grande show?
É quase impossível. Há a simples empolgação de estar no
evento, aquela massa de gente se misturando, isso gera um tipo de eletricidade.
É empolgante, mas não é exatamente sobre música. É histeria em massa.
Você já me disse que, tocando em locais menores, há a
chance de compor, algo difícil quando se está em uma turnê de grandes
shows.
Certo. Além disso, gosto de trabalhar. Não há nada mais
divertido do que tocar música para uma plateia. Dá para improvisar nos ensaios,
mas é meio que uma atmosfera morta. Não há retorno do público. Não há tensão,
na verdade, porque em um clube, com um público pequeno, você fica livre para
fazer qualquer coisa. Ainda existe a obrigação de ser bom, então você não
consegue ficar realmente solto; há gente olhando. Então, há essa tensão linda.
Há liberdade e, ao mesmo tempo, uma obrigação de tocar bem. Posso trabalhar o
dia inteiro, voltar para casa, tomar banho, trocar de roupa e fazer duas ou
três apresentações no Whisky, cara, e amo isso. Amo a performance no palco do
mesmo jeito que um atleta ama correr para se manter em forma.
Vocês conseguem criar algo quando improvisam?
Sim. Veja, precisávamos de outra música para este álbum [The
Soft Parade]. Estávamos queimando neurônios tentando pensar em algo.
Estávamos no estúdio, então começamos a tocar várias músicas antigas. Viagens
de blues. Clássicos do rock. Finalmente, começamos a tocar por uma hora.
Passamos por toda a história do rock – começando com o blues, pelo rock and
roll, surf music, música latina, tudo. E saiu algo. Eu a chamo de “Rock Is
Dead”. Duvido que alguém escute um dia. [N.R.: “Rock Is Dead” finalmente foi
lançada em The Doors Box Set (1997) ]
Recentemente foi divulgado que você havia dito que o
rock estava morto. É algo em que você realmente acredita?
É como o que falamos antes. Falei algo sobre o movimento de
volta às raízes. A chama inicial se apagou. A coisa que chamam de “rock and
roll” ficou decadente. Daí houve uma ressurreição do estilo promovida pelos
ingleses. Aquilo foi muito longe, foi articulado. Depois, ficou olhando para si
próprio, o que, acho, é a morte. O rock and roll ficou com vergonha de si, sem
evoluir, e se tornou algo meio incestuoso. A energia acabou. Não existe mais
uma crença.
Como reage ao que escrevem a seu respeito?
Bem, eu pergunto: há uma coisa pior do que uma foto muito
ruim? Uma foto pode fazer qualquer pessoa parecer um anjo, bobo, demônio, uma
não entidade. Muito disso vem por acaso; muito é malícia e também idolatria.
Uma foto ruim pode te dar vários momentos de perda psíquica real. Você sabe que
não é você, mas alguém escolheu te criticar daquela forma.
Você se imagina um roqueiro a vida toda?
É difícil dizer. Talvez eu vire um executivo de uma
empresa... Meio que gosto da imagem. Escritório grande. Secretária...
Nos três primeiros álbuns, o crédito de compositor em
cada faixa ia para o The Doors, em vez de ir para os indivíduos. Mas sei que a
partir de agora, com o novo The Soft Parade, os compositores individuais serão
listados nos álbuns. Por quê?
No começo, eu escrevia a maioria das canções, letra e
música. Em cada álbum seguinte, Robby [Krieger, guitarrista] contribuiu
com mais músicas, até que finalmente em The Soft Parade tudo
está dividido praticamente igual entre nós dois. Temos uma visão muito diferente
da realidade, argumentos diferentes, então senti que era hora. Somos uma
parceria, sabe? Artisticamente e financeiramente. Dividimos por igual. No
começo, muito foi em interesse coletivo, para manter tudo unido. Agora que a
unidade não está mais tanto em risco, achei que era o momento de as pessoas
saberem quem estava dizendo o quê. Então, este será o primeiro disco em que
daremos créditos ao compositor e acho que continuaremos fazendo isso.
Como sua visão das coisas é diferente da de Robby? A
dele é, digamos, mais romântica, ou o que é?
Não sei bem. Você terá de descobrir sozinho. Não sei mesmo.
Musicalmente, como guitarrista, ele é mais complexo – mudanças de acorde,
lindas melodias e tal – e minha coisa está mais na veia do blues: longa,
errante, básica e primitiva. É que a diferença entre dois poetas é muito
grande. Em muitas músicas no começo, eu ou Robby vínhamos com a ideia básica,
letras e melodia, mas depois todo o arranjo e a gestação real da canção
aconteciam noite após noite, dia após dia, em ensaios ou nos clubes. Quando
viramos uma banda de grandes shows, uma banda de discos, e quando fomos
contratados para lançar tantos álbuns por ano, tantos singles a cada seis
meses, aquele processo natural, espontâneo e gerador não teve a chance de acontecer
como era no começo. Tivemos que realmente criar músicas no estúdio. O que
começou a acontecer foi que Robby ou eu vínhamos com a canção e o arranjo já
completos em nossa cabeça em vez de trabalhar lentamente naquilo.
Você já declarou que gosta de fazer as pessoas se
levantarem da cadeira, mas não de criar intencionalmente uma situação
caótica...
A situação nunca ficou fora de controle, na verdade. É algo
bem brincalhão, mesmo. Nós nos divertimos, a garotada se diverte, a polícia se
diverte. É um triângulo meio estranho. Só pensamos em subir ao palco e tocar
boa música. Às vezes, eu me empolgo e excito as pessoas um pouco, mas
normalmente estamos ali tentando tocar boa música. É isso. Cada vez é
diferente. Há diversos graus de febre no auditório esperando por você. Daí,
você sobe ao palco e encontra essa onda de energia em potencial. Nunca sabe o
que será.
O que você quer dizer com “às vezes, eu me empolgo e
excito as pessoas um pouco”?
Digamos que estava testando os limites da realidade. Estava
curioso para ver o que aconteceria. Era só isso: mera curiosidade.
Como você testa os limites?
Eu simplesmente tento levar a situação o mais longe
possível.
E mesmo assim não sente, em momento algum, que as
coisas saíram do controle?
Nunca. Você tem de olhar para isso de maneira lógica. Se não
houvesse policiais ali, alguém tentaria subir ao palco? O que eles fariam
quando conseguissem? Quando sobem, ficam muito tranquilos, não vão fazer nada.
O único incentivo para subir é porque há uma barreira. Se não houvesse
barreira, não haveria incentivo. É isso. Acredito firmemente nisso. Sem
incentivo, sem carga. Ação e reação. Pense nos shows gratuitos no parque.
Nenhuma ação, nenhuma reação. Nenhum estímulo, nenhuma resposta. Só que é
interessante, porque a garotada tem uma chance de testar os policiais. Você os
vê hoje, andando com suas armas e uniformes, e o policial se porta como se
fosse o homem mais durão do quarteirão, e todos ficam curiosos sobre o que
exatamente aconteceria se você o desafiasse. O que ele vai fazer? Acho que é
uma coisa boa, porque dá aos jovens uma chance de testar a autoridade.
Há uma citação atribuída a você que aparece muito na
imprensa. Diz: “Estou interessado em qualquer coisa sobre revolta, desordem,
caos...”
“... especialmente atividade que pareça não ter
significado.”
Isso, essa mesmo. É outro exemplo de manipulação da
mídia? Você inventou essa frase para um jornalista?
Sim, definitivamente, criei a frase, mas tem verdade nela
também. Quem não fica fascinado com o caos? Só que é mais do que isso. Estou
interessado em atividade que não tenha significado, e tudo o que quero dizer
com isso é atividade livre. Tocar. Atividade que não tenha nada nela exceto o
que é. Nenhuma repercussão. Nenhuma motivação. Atividade... livre. Acho que
deveria haver um carnaval nos Estados Unidos, como o do Rio de Janeiro. Deveria
haver uma semana de hilaridade nacional... uma pausa em todo trabalho, todos os
negócios, toda discriminação, toda autoridade. Uma semana de liberdade total.
Seria o começo. Claro, a estrutura de poder não seria realmente alterada, mas
alguém nas ruas – não sei como o escolheriam, aleatoriamente, talvez – se
tornaria o presidente. Outra pessoa seria o vice. Outras seriam senadores,
deputados, no tribunal superior, policiais. Só duraria uma semana e, depois,
voltaria ao que era antes. Acho que precisamos disso. É. Algo assim.
Tem algum tipo de ritual que você e os membros do The
Doors fazem?
Sim, existe um ritual no sentido de que usamos os mesmos
acessórios e as mesmas pessoas e as mesmas formas repetidamente. A música
definitivamente é um ritual, mas não acho que esteja esclarecendo o ritual ou
acrescentando qualquer coisa a ele.
Você se vê indo mais em direção à poesia, à literatura
em geral?
É minha maior esperança, meu sonho.
E quando você começou a escrever poemas?
Ah, acho que por volta da 5a ou 6a série escrevi um chamado
“The Poney Express”. É o primeiro que me lembro. Era um desses poemas tipo
balada. Só que nunca consegui terminar. Sempre quis escrever, mas sempre achei
que só seria bom se a mão pegasse a caneta e começasse a se mexer sem eu ter
algo a ver com aquilo. Como uma escrita automática. Escrevi outros, claro.
Escrevi “Horse Latitudes” quando estava no ensino médio. Guardei muitos cadernos
durante o ensino médio e a faculdade e, quando saí da escola por algum motivo
estúpido – talvez sábio –, joguei tudo fora. Não consigo pensar em nada que
mais adoraria ter agora do que aqueles cadernos perdidos. Estive pensando em
ser hipnotizado ou tomar pentatol sódico para tentar lembrar, porque escrevi
naqueles cadernos noite após noite. Só que, talvez se nunca os tivesse jogado
fora, nunca teria escrito algo original – porque eram principalmente acúmulos
de coisas que eu tinha lido ou ouvido, como citações de livros. Acho que, se
nunca tivesse me livrado deles, nunca seria livre.
O que o atraiu na poesia?
Acho que foi quem me ensinou a falar, a conversar. De
verdade. Acho que foi a primeira vez em que aprendi a falar. Até o advento da
linguagem, era o toque – comunicação não verbal.
Tenho a sensação de que muitas pessoas que militam no
rock não têm muito ou nenhum respeito pela forma – quero dizer, de nunca
admitirem ser cantores ou músicos de rock. Em vez disso, sempre dizem que são,
na verdade, músicos de jazz ou cineastas...
Sei o que você quer dizer. Mas acho que a maioria dos
músicos e cantores de rock realmente gosta do que faz. Seria psicologicamente
enervante só fazer isso para ganhar dinheiro. Acho que o que estraga tudo é a
besteira dita pela imprensa, pelos colunistas de fofocas e revistas para fãs.
Um baterista, vocalista ou guitarrista gosta do que está fazendo e, então, de
repente, todos dizem alguma besteira estranha sobre a viagem do cara. Ele
começa a duvidar de sua motivação. Sempre há um grupo que atrapalha a
sensibilidade. Então, você tem uma leve sensação de vergonha e frustração no que
está fazendo. É uma pena, de verdade. Queria poder ser mais específico, mas
acho que você entende o que eu quero dizer.
* Entrevista republicada em janeiro de 2014, na edição 88
da Rolling Stone Brasil
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