terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Não perguntara seu nome

Fernando era um sujeito culto. Tinha uma bagagem cultural admirável. Discorria sobre os mestres das letras, com facilidade invejável. Falava, por horas, se deixar, de Nietzsche, Kant, Proust.

Eu estava desempregado. Ouvia palavras nada amigáveis de minha esposa. “Beck, você precisa parar de ser vagabundo. Vá arrumar um emprego”, ordenava ela. Eu apenas olhava-a, desanimado com as minhas escolas.

- não entendo um cara como você, inteligente, intelectual, se submeter a isso – dizia ela.

- a isso o quê? – questionei.

- a essa vida de merda, de ser um pobre!

- as pessoas com o tempo tem tendência a se acomodar.

- bela explicação!

- se acomodam com o emprego, com o casamento, com tudo ao seu redor.

- nossa, estou ficando excitada – ironizou.

Levantei-me do sofá e fui pegar uma cerveja. Abri-a, e bebi. A cevada descia pela garganta, gelada, a refrescar as minhas entranhas.

- olha só, abriu mais uma cerveja.

- e qual o problema?

- você não trabalha. Dorme às cinco da manhã. Fica enchendo o saco dos vizinhos com as batidas das teclas.

- porra, dá um tempo, pelo amor de Deus!

O telefone  tocou. Era Fernando chamando-me para sair beber. Sem hesitar, aceitei o convite.
Sempre defendi a ideia de que não se deve recusar uma cordialidade alcoólica. Fernando sabia que eu não tinha grana para nada. Mas mesmo assim ligou-me.

Bebemos. Demos boas risadas, e de novo não escrevi. Há tempos eu queria fazer algo diferente. Algo parecido com uma peça teatral. Queria experimentar o lado da dramatização.

- Beck, teu negócio é conto, crônica, poesia, romance, novela. Essa merda de teatro, não é para você, cara.

- mas não custa nada ver como é.

- não, claro. É uma experiência.

Eu escrevia crônicas para jornais da cidade. Algumas eram repletas de palavrões, o que assustava os leitores. “Isso não é texto que se saía em um jornal”, alertavam os leitores. E eu não dava muita atenção. “Nem sabem escrever”, cogitava no meu exercício introspectivo.

- eu os leio, cara. E os acho do caralho – dizia Fernando.

- mas o povo não curte muito, não.

- eles não sabem escrever.

- são meus leitores.

- é verdade. Foda-se. Escreva o quê a sua mente quer.

- eu faço sempre isso.

- Continue assim.

- não sei se será possível.

- sempre é.

- tenho dúvidas.

- quê dúvidas?

- sei lá.

Enchi mais um copo de cerveja. Acendi um cigarro. Dei algumas tragadas. E observei uma garota atravessar a rua. Ela era bela. Tinha uma ótima nádega. Olhos vivos, cativantes, sedentos, misteriosos. Cabelos ruivos. Rebolava ao andar. Chamava a atenção de todos, naquele bar.

Falei para Fernando que iria ao banheiro. Acho que ele nem viu ela desfilar. E passou em sua frente! Esse é o problema com intelectuais: divagam demais, e nem percebem a beleza da vida. “tudo bem”, respondeu.

Caminhei lentamente na direção dela. Enquanto andava, imaginava como iria abordá-la. Sentei-me ao seu lado, no balcão. “Desce uma bebida para a moça”, disse para o garçom, meu conhecido da boemia. “Vinho, por favor”, respondeu ela. Observei-a e disse-lhe: “Lindos olhos, os seus”. “Obrigado”, redarguiu. Conversamos sobre vários assuntos. Descobri que ela era professora universitária. Notei a felicidade em sua feição, quando lhe contei que era escritor.” Nunca conheci um. Não sei como são”, declarou. "São todos uns merdas. Não tem nem aonde cair mortos”. Assustada, propôs sentarmo-nos à mesa que ficara vazia. Assenti que sim.

Sentamos. A conversa se estendeu. Fernando viu-nos e veio em nossa direção:

- posso me sentar, senhores?

- claro – respondeu ela – adoro conhecer pessoas novas, diferentes.

Fernando começou a falar sobre literatura, e não parou mais.

- esse cara aqui é escritor. Escreve no Diário da Manhã e em outros jornais. – falou Fernando.

- sim, sim. Nós conversamos, no balcão, mas não havia me dito que escrevia para o DM.

- pois é. Acho sem importância – falei, tentando esquivar-me do papo chato de escritor para leitor.

- escreve sobre o quê? – ela quis saber.

- sobre a vida.

- os textos dele são geniais – afirmou Fernando.

- sim, sim. Agora lembrei. Você é o cronista da Opinião Pública!

- isso.

- cê é um gênio!

Encontrei uma fã. Beijei-a e Fernando ficou ali, assistindo-nos.

- você é um gênio – reforçou ela.

Dei-lhe mais um beijo.Nos despedimos e anotei seu telefone.

- gata, né, Fernando.

- sim.


Entrei no carro e lembrei: não perguntara seu nome. 

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