Fernando era um sujeito culto. Tinha uma bagagem cultural
admirável. Discorria sobre os mestres das letras, com facilidade invejável.
Falava, por horas, se deixar, de Nietzsche, Kant, Proust.
Eu estava desempregado. Ouvia palavras nada amigáveis de
minha esposa. “Beck, você precisa parar de ser vagabundo. Vá arrumar um emprego”,
ordenava ela. Eu apenas olhava-a, desanimado com as minhas escolas.
- não entendo um cara como você, inteligente, intelectual,
se submeter a isso – dizia ela.
- a isso o quê? – questionei.
- a essa vida de merda, de ser um pobre!
- as pessoas com o tempo tem tendência a se acomodar.
- bela explicação!
- se acomodam com o emprego, com o casamento, com tudo ao
seu redor.
- nossa, estou ficando excitada – ironizou.
Levantei-me do sofá e fui pegar uma cerveja. Abri-a, e bebi.
A cevada descia pela garganta, gelada, a refrescar as minhas entranhas.
- olha só, abriu mais uma cerveja.
- e qual o problema?
- você não trabalha. Dorme às cinco da manhã. Fica enchendo
o saco dos vizinhos com as batidas das teclas.
- porra, dá um tempo, pelo amor de Deus!
O telefone tocou. Era
Fernando chamando-me para sair beber. Sem hesitar, aceitei o convite.
Sempre defendi a ideia de que não se deve recusar uma
cordialidade alcoólica. Fernando sabia que eu não tinha grana para nada. Mas
mesmo assim ligou-me.
Bebemos. Demos boas risadas, e de novo não escrevi. Há
tempos eu queria fazer algo diferente. Algo parecido com uma peça teatral. Queria
experimentar o lado da dramatização.
- Beck, teu negócio é conto, crônica, poesia, romance,
novela. Essa merda de teatro, não é para você, cara.
- mas não custa nada ver como é.
- não, claro. É uma experiência.
Eu escrevia crônicas para jornais da cidade. Algumas eram
repletas de palavrões, o que assustava os leitores. “Isso não é texto que se
saía em um jornal”, alertavam os leitores. E eu não dava muita atenção. “Nem
sabem escrever”, cogitava no meu exercício introspectivo.
- eu os leio, cara. E os acho do caralho – dizia Fernando.
- mas o povo não curte muito, não.
- eles não sabem escrever.
- são meus leitores.
- é verdade. Foda-se. Escreva o quê a sua mente quer.
- eu faço sempre isso.
- Continue assim.
- não sei se será possível.
- sempre é.
- tenho dúvidas.
- quê dúvidas?
- sei lá.
Enchi mais um copo de cerveja. Acendi um cigarro. Dei
algumas tragadas. E observei uma garota atravessar a rua. Ela era bela. Tinha uma ótima nádega. Olhos vivos, cativantes, sedentos, misteriosos. Cabelos ruivos.
Rebolava ao andar. Chamava a atenção de todos, naquele bar.
Falei para Fernando que iria ao banheiro. Acho que ele nem
viu ela desfilar. E passou em sua frente! Esse é o problema com intelectuais:
divagam demais, e nem percebem a beleza da vida. “tudo bem”, respondeu.
Caminhei lentamente na direção dela. Enquanto andava,
imaginava como iria abordá-la. Sentei-me ao seu lado, no balcão. “Desce uma
bebida para a moça”, disse para o garçom, meu conhecido da boemia. “Vinho, por
favor”, respondeu ela. Observei-a e disse-lhe: “Lindos olhos, os seus”. “Obrigado”,
redarguiu. Conversamos sobre vários assuntos. Descobri que ela era professora
universitária. Notei a felicidade em sua feição, quando lhe contei que era
escritor.” Nunca conheci um. Não sei como são”, declarou. "São
todos uns merdas. Não tem nem aonde cair mortos”. Assustada, propôs sentarmo-nos
à mesa que ficara vazia. Assenti que sim.
Sentamos. A conversa se estendeu. Fernando viu-nos e veio em
nossa direção:
- posso me sentar, senhores?
- claro – respondeu ela – adoro conhecer pessoas novas,
diferentes.
Fernando começou a falar sobre literatura, e não parou mais.
- esse cara aqui é escritor. Escreve no Diário da Manhã e em
outros jornais. – falou Fernando.
- sim, sim. Nós conversamos, no balcão, mas não havia me
dito que escrevia para o DM.
- pois é. Acho sem importância – falei, tentando esquivar-me
do papo chato de escritor para leitor.
- escreve sobre o quê? – ela quis saber.
- sobre a vida.
- os textos dele são geniais – afirmou Fernando.
- sim, sim. Agora lembrei. Você é o cronista da Opinião
Pública!
- isso.
- cê é um gênio!
Encontrei uma fã. Beijei-a e Fernando ficou ali,
assistindo-nos.
- você é um gênio – reforçou ela.
Dei-lhe mais um beijo.Nos despedimos e anotei seu telefone.
- gata, né, Fernando.
- sim.
Entrei no carro e lembrei: não perguntara seu nome.
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