sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Devaneios e delírios em uma manhã de ressaca

Ela sentou ao meu lado. Eu estava de ressaca. Havia bebido uma quantidade que o homem moderno desconhece. Sentia o meu corpo, mole e pesado ao mesmo tempo. Queria a minha cama. Mas não a tinha. O sol, torturava a minha retina. Odeio as manhãs, sobretudo quando estou mal. Ninguém é feliz às 6h40.

Fiquei parado, a pensar sobre a vida. Divaguei sobre a beleza e o conceito de belo. Veio-me à mente os devaneios nietzchianos. Para ele, precisamos da arte porque a verdade machuca-nos. Kant disse que o que é belo para mim, pode não ser belo para o outro. Assim o conceito de beleza torna-se relativo, dependendo do ponto de vista.

Caí na real. Estava viajando em pensamentos. Olhei a meu redor. Levantei-me e fui em direção dela. Perguntei-lhe:

- olá, tem como você me dar um cigarro?

Seus olhos entraram em mim. A principio fiquei com vergonha. Não sabia o que falar. Cogitei, por alguns segundos, em ir embora e deixá-la com o cigarro para trás. Mudei de ideia:

- tenho sim, respondeu-me, expressando gentileza e sutileza.

Dei uma olhada nos livros. Eram alguns sobre Comunicação e outros de literatura. Havia por ali, Proust, Hemingway, Fitzgerald e outros gênios das letras. Ela percebeu que eu olhava-os. E me disse, com ares de curiosidade:

- pelo visto você é fã de literatura, não?

- sou sim. Adoro textos. Adoro arte. Amo música. Para mim, o homem não poderia viver sem a arte.

- concordo, replicou ela.

Iniciamos uma conversa. O nível do diálogo era alto. Eu tinha de esforçar-me para lhe acompanhar. Ela citava livros, poetas, escritores. Eu recorria a discos, poetas, frases. Algumas, reconheço, não teve como lembrar. Outras, nem sei por que falei.

Terminei o cigarro. Mas ainda continuávamos a dialogar. “Eu preciso comer algo”, pensei comigo. Introspectivamente, eu queria ir em busca de algum salgado. Mas fisicamente, deveria ficar. Estava impressionado com a beleza dessa garota. Lembrei-me de uma frase de William Blake: “O corpo feminino é a mais beleza expressão artística”.

“Cara, vá comprar a porra do lanche. Você bebeu ontem, agora aguente os sintomas da ressaca. Eles vão lhe atrapalhar”, disse o meu consciente.

Por entre visões surrealistas, decidi: iria comprar o salgado, e voltaria para continuar a conversa.

- vou ali, comprar algo para comer, e já volto. Quer algo, lhe perguntei, sem segundas intenções e tentando firmar a voz.

- pode ir. Não quero nada, não.

Levantei-me e fui. Primeiro, caminhei em direção ao banheiro. Precisava olhar-me ao espelho. Meu rosto deveria estar todo vermelho, de pudor que tenho em grande quantidade.
“caralho, seu filha da puta. Como pode um cara ser assim? Ficar com vergonha de conversar com uma garota, e nem ter capacidade de manter a postura e a cordialidade? Porra!”, redargui, novamente, em outro exercício introspectivo.

Saí do banheiro.

Comprei dois salgado e um café. Comi-os e bebi. Acendi um cigarro. Dei algumas tragadas no ar, a refletir sobre a vida e o mundo que nos cerca. Parei de pensar. Precisava agir, talvez. Parar de ler, me diziam, seria uma boa. Os livros ainda iriam me deixar maluco, um cara me falou nas festividades de ano novo, certa vez.

Nem dei muita atenção. Queria era mesmo beber. E depois, me arrepender como corriqueiramente faço. Bebo e arrependo-me. Fumo, falo coisas indevidas. E depois, penso na frase de Cazuza: “Por que a gente é assim”.

Não sei a resposta. Se a soubesse, qual graça que teria a vida? A graça dela, não é ter autonomia para cometer erros? Os mesmos erros que hoje cometo, amanhã não os cometerei. 0

Mas eu quero errar. Eu tenho esse direito. Por isso gosto da boemia. Nela, sinto-me seguro e protegido da claridade diurna. O sol machuca-me. O pragmatismo iluminista, não gosto. Prefiro a poesia romântica repleta de excessos e amor.

Os mesmos livros que podem deixar-me maluco, ensinaram-me que o “inferno são os outros”. Satre era sábio. Sabia das cosias. Era preocupado com o mundo, com a sociedade, com as injustiças. Era o único velho em meio a uma multidão de jovem, em 1968, em Paris. Ali a utopia “paz e amor”, teve o seu ápice.

Sonho com uma sociedade justa e igualitária. Quem não sonha? Somente pessoas más. Quem tem coração, é de esquerda. Vota na esquerda. E se preocupa com as disparidades e arbitrariedades.

Gramsci tinha razão: “Viver é tomar partido”.

Chega de citações. Estou parecendo uma enciclopédia de filosofia e artes.

RETORNO

Controlei os meus devaneios. Cheguei ao banco em que estávamos. Ela não estava ali. Nem sinal seu, por perto, havia.

“Aonde ela estaria?”, pensei.

Sei lá. Talvez ela tenha se cansado de esperar, tem toda razão e direito, também. Eu que não deveria ficar divagando merdas por aí, como um otário.  

“burro, burro, burro!”

-Beck, cê tem que ir pra sala, cara, disse um camarada.

- é verdade, meu. Eu fiquei aqui, conversando com uma garota. Ela era linda, mas foi embora.

- então é por isso que não entrou na sala ainda?

-sim

- vamos!

Coloquei a minha mochila nas costas, e caminhei em direção às escadas. Iria assistir duas aulas, com uma ressaca cruel.

Empurrei a porta, e quem eu vejo: Ela.


Valeu enfrentar o martírio da ressaca.

Nenhum comentário:

Postar um comentário